Ricardo Stuckert / DivulgaçãoLula no 1º de Maio do ano passado; para governar no palanque, os petistas precisam continuar a investir na polarização

A grande falsificação

Lula e o PT sabem que não entregarão um bom governo; precisam manter a narrativa de que são os únicos democratas contra os outros, "golpistas"
17.03.23

Quem ouve Lula falar fica com a impressão de que ele venceu a eleição por 80% dos votos. Mas ele venceu por um triz, por menos de 2% (fato que não pode ser explicado com a alegação — de resto verdadeira — de que Jair Bolsonaro usou a máquina). Lula passou raspando com os votos dos que não são seus seguidores, que só o escolheram porque não havia outra opção para impedir a reeleição de Bolsonaro. Perdeu em quatro das cinco regiões do Brasil e, se não fosse o Nordeste, não teria voltado à Presidência.

Os que votaram em Lula apenas como veto a Bolsonaro, somados aos que votaram nulo, em branco ou se abstiveram, em boa parte, não aderiram ao governismo, e muitos desses se opõem ao novo governo (ou se oporão, quando uma oposição democrática se articular). Então essa narrativa petista segundo a qual os que não apoiam o governo são bolsonaristas é falsa.

Além de falsa, é solerte. Sim, Lula e o PT estão tentando urdir uma grande falsificação dizendo que quem não apoia o governo é porque está do lado dos golpistas de 8 de janeiro. Assim querem dividir o cenário político: entre os democratas (que seriam os governistas), de um lado, e os golpistas, de outro. Fazem isso de caso pensado, com o objetivo de não deixar espaço para o nascimento e a atuação de uma oposição democrática (sem a qual, como sabemos, não pode haver democracia plena). Antes de qualquer coisa, porém, é uma ofensa à inteligência de milhões de brasileiros e brasileiras.

Mas por que Lula e o PT fazem isso? Porque acham que não têm alternativa. Bom governo, aclamado pela população, nas condições atuais, sabem que não será possível entregar.

Repetem que vão repetir Lula 1, mas isso também é um mito. Lula 1 foi o mandato do mensalão e terminou com acentuada queda de popularidade do líder e de aprovação do seu governo. Em agosto de 2005, Lula teve de pedir perdão aos brasileiros pelo escândalo do mensalão, logo após a confissão pública de seu publicitário Duda Mendonça de que recebeu pagamento de forma criminosa no exterior por serviços prestados à campanha presidencial.

Na ocasião ele, Lula, disse: “Eu me sinto traído, traído por práticas inaceitáveis, das quais não tive conhecimento… Não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos de pedir desculpas… o PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, tem de pedir desculpas”.

Um mês depois, pesquisa CNT/Sensus, realizada entre 14 e 17 de setembro de 2005, já registrava popularidade de Lula abaixo de 50% e uma queda de 9,2 pontos percentuais em relação a junho na aprovação do seu governo. E esses números continuaram caindo até dezembro. Lula e o PT só se recuperaram porque houve um acordo, costurado por Márcio Thomaz Bastos com a elite tucana, incluindo Fernando Henrique Cardoso, para jogar água fria na campanha pelo impeachment. Geraldo Alckmin, sempre ele, jogou a tábua de salvação dizendo que o impeachment seria feito nas urnas de 2006. E deu no que deu.

Foi o palanque de 2006 a tábua de salvação do governo Lula 1, graças à benemerência e a pouca intimidade com a inteligência humana dos tucanos. O PT aprendeu a lição. Quando há um problema, a solução é o palanque. Por que isso não valeria também para o governo Lula 3?

Para governar no palanque, é preciso manter a conjuntura polarizada. O governo Bolsonaro acabou, mas tem de ser mantido vivo, respirando por aparelhos, até 2026. É óbvio que Bolsonaro deveria ter sofrido impeachment no meio do mandato. Assim como é óbvio que Lula e o PT não queriam isso. Queriam transformá-lo em bicho-papão eterno, para voltar ao poder eleitoralmente e para governar usando o espectro de um Emmanuel Goldstein (o inimigo público número 1 do romance 1984, de George Orwell) para justificar tudo. Para que a polarização funcione, é necessário que não haja um terceiro polo. Por isso todos os esforços governistas se concentrarão em impedir que surja uma oposição democrática, quer dizer, uma oposição não-bolsonarista.

E para polarizar é necessário radicalizar. A guinada de Lula e do PT para a esquerda tem, portanto, explicação. Recordemos.

Quando Lula concorreu pela primeira vez, a grande preocupação dos democratas não populistas (social-democratas e liberais) era a seguinte: “Será que Lula vai controlar as tendências xiitas do PT?”. Eram as tendências trotskistas e marxistas-leninistas minoritárias, tidas na época por “xiitas”. Mal sabiam eles que o Partido Interno (Orwell de novo) sempre foi “sunita”. Lula, Dirceu, Falcão, ninguém dessa turma era “xiita”. Coitadas das tendências minoritárias: pagaram o pato pelo que nunca fizeram. Não foram responsáveis por mensalão ou petrolão, queriam apenas a revolução. É claro que, depois do governo instalado, começaram a disputar um carguinho aqui, outro acolá, para fortalecer suas tendências e também para se dar bem na vida, porque ninguém é de ferro. Mas a corrupção sistêmica foi obra dos tidos por moderados, não dos que eram considerados radicais. Então… então os “herbívoros” se revelaram piores do que os “carnívoros”.

Agora, entretanto, a situação mudou. A vontade de revanche unida ao desespero de não poder entregar o que foi prometido converteu todos em “carnívoros” de verdade. Isso é o que significa dizer que o PT foi mais para a esquerda quando deveria ir para o centro. Mas não foi para a esquerda puxado por “alas radicais” ou “ideológicas” minoritárias. Não são esses grupúsculos do PT que estão puxando Lula para a esquerda e esculhambando o seu governo. Ou será que Gleisi Hoffmann (a presidente do partido), Rui Falcão, Jilmar Tatto, Aloizio Mercadante e o próprio Lula são de tendências minoritárias do PT? Lula e a direção do PT foram para a esquerda porque avaliaram que não há alternativa.

Mesmo sabendo que as condições objetivas para uma ruptura com a democracia liberal (que os militantes mais assanhados chamam de “burguesa”) não estão reunidas, eles acham que devem forçar uma guinada a partir das condições subjetivas que se constelaram com a volta de Lula ao governo. Tipo agora ou nunca. Os sinais são claros e estão por toda parte. Em termos de impregnação ideológica dos militantes de esquerda, a situação agora (2023) é muitas vezes pior do que quando o PT esteve no governo (no período 2003-2016). Basta ver o alinhamento com ditaduras. Não é mais só Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola. Agora é também Rússia, China, Síria e até Irã.

Claro que isso tem grande chance de dar errado. Se a eleição fosse hoje, talvez Lula nem ganhasse ou sua vantagem fosse bem menor do que 2%. Não se sabe. Mas com certeza, se vencesse, não seria por muito, mesmo com toda a boa vontade da grande mídia e do Judiciário.

Para o PT, entretanto, é a única chance de dar certo porque é a maneira de o organismo continuar vivo, independentemente do que vier a acontecer. A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo (o único partido no Brasil “com cabeça, tronco e membros”, como disse Lula sobre o PT — e a metáfora é reveladora), uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.

Isso bate perfeitamente com a estratégia do PT de se delongar no governo, ganhando eleições sucessivamente até se tornar hegemônico. É por isso, aliás, que o PT nunca se deu muito bem com a rotatividade democrática, ao contrário do que ocorre com partidos que aceitam a democracia liberal (digam-se de esquerda ou de direita).

Vejamos o caso das duas (únicas) democracias liberais da América do Sul (segundo o V-Dem, da Universidade de Gotemburgo): Chile e Uruguai. Os regimes desses países só são democráticos liberais — entre outros fatores — porque, para eles, a alternância de governo entre forças políticas contrárias não é o fim do mundo.

O caso do Chile. Aylwin é substituído por Frei, que é substituido por Lagos, que é substituído por Bachelet, que é substituída por Piñera, que é substituído novamente por Bachelet, que é substituída novamente por Piñera, que é substituído por Boric. E o mundo não acabou.

O caso do Uruguai. Sanguinetti é substituído por Lacalle, que é substituído por Sanguinetti novamente, que é substituido por Batlle, que é substituído por Vázquez, que é substituído por Mujica, que é substituído novamente por Vazquez, que é substituído por Lacalle Pou. E o mundo não acabou.

Na democracia (apenas) eleitoral (e defeituosa) brasileira, perder uma eleição é um desastre para o PT porque interfere na sua estratégia. Relembremos que o PT não saiu do governo pelo voto. Voltando ao governo, dele também não sairá facilmente apenas pelo voto. As eleições, para os neopopulistas, são um meio de tomar e reter o poder, não parte do metabolismo normal da democracia (como o são, por exemplo, para as esquerdas chilena e uruguaia, que aceitam a democracia liberal).

Mas, do seu ponto de vista (autocentrado), o PT não deixa de ter uma razão, conquanto torta. Se o partido não tomasse sua sobrevivência como o maior imperativo do universo, pensam os petistas que ele já teria desaparecido (ou virado um PCdoB) depois de sua hegemonia sobre setores intelectuais, artísticos, jurídicos, jornalísticos, ter sido seriamente abalada no período 2012-2018: pelo julgamento no STF do chamado mensalão, pelas irrupções (swarmings) de 2013 (que quebraram o seu monopólio das ruas), pelos processos da Lava Jato (com a condenação e prisão de boa parte da direção partidária), pelas reações negativas da sociedade à polarização na campanha eleitoral de 2014, pelas grandes manifestações de rua de 2015 e 2016 e o impeachment de Dilma Rousseff, pelos resultados desatrosos das eleições municipais de 2016, pela prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro em 2018.

Com tudo isso, a hegemonia do PT sobre o pensamento e o comportamento de extensos (e influentes) setores da sociedade brasileira (como os mencionados acima), foi abalada, mas não foi extinta. E tanto é assim que se recompôs.

Uma hegemonia só desaparece de duas maneiras: ou quando é metabolizada pela democracia num jogo plural em que diversas forças políticas se equilibram (ou se revezam no poder como parte da dinâmica normal da política); ou quando é substituída por outra hegemonia por um tempo suficientemente longo (e mesmo assim, nesse caso, suas matrizes continuam latentes, podendo ser reativadas quando uma nova configuração favorável se constelar).

O PT fará qualquer coisa para dar continuidade à sua estratégia (cujo principal objetivo é a sobrevivência do próprio organismo), inclusive voltar a abraçar a ideologia da esquerda pré-queda do muro de Berlim dos anos 80, ainda na “vibe” da Primeira Grande Guerra Fria —e, se conseguir, alinhar o Brasil ao bloco das autocracias de uma Segunda Grande Guerra Fria (na qual já estamos, pelo menos na antessala). Mas resistirá a ser metabolizado pela democracia liberal (e por isso lançará mão de tudo para que nossa democracia eleitoral não ascenda à condição de uma democracia liberal) e, mesmo que sobrevenha ao país o desastre de um novo governo de extrema direita, se manterá coeso aguardando essa nova configuração favorável se constelar.

Para qualquer uma dessas alternativas, porém, Lula e o PT precisam criar a grande falsificação de que são os únicos democratas contra todos os outros, que seriam golpistas.

 

Augusto de Franco é escritor.

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500
  1. Uma coisa temos que admitir, o bolsonarismo e o petismo conseguiram minar a terceira via. Aproveitaram-se da fogueira das vaidades das lideranças emergentes e da burrice dos caciques de partidos como o PSDB, MDB, PDT e PSD, cuja miopia intelectual não lhes permitiu agregar forças para construir novos caminhos. Desta forma resta-nos a esperança de que os fatos políticos de 2023 e 2024 levem as mentes independentes a enxergar e construir novos caminhos para a governança do nosso país. 2026 vem aí

  2. A análise de Agusto Franco é sempre brilhante.. Mas será que o PT sem Lula é capaz de se manter hegemônico? Como todo líder populista, Lula numa quis fazer um sucessor devido ao medo da criatura se voltar contra o criador. Um país que elege um Congresso a direita e um presidente de esquerda me parece muito sintomático da dependência extrema do petismo ao lulismo.

  3. Muito bom, cirúrgico. A esperança é que tem essa oposição capanga, na minha opinião, talvez venha alguma novidade de renovação!.

  4. É uma organização criminosa comprovada em passado recente que nada tem tem de democrata, traz para o país o atraso e a decadência, não pode e nem vai dar certo. O Descondenado é uma farsa que nem o consórcio de mídia vai conseguir impingir e nem o judiciário vai sustentar por muito tempo. e o congresso tem que cumprir seu papel.

  5. O desgoverno Lula/PT serão mais 4 anos de atraso, mentiras, corrupção desenfreada, traição ao Brasil e vergonha de ser brasileiro! Viva a Lava Jato!

  6. A política brasileira é dominada por um imenso câncer autoritário e corrupto. Há muitas metástases e lula e bolsonaro são duas destas metástases, as duas metástases mais visíveis.

  7. Para que os próximos quatro anos não sejam perdidos, só há uma solução: Bozo com uns dez anos de cadeia e Luladrão sendo chamado para uma conversa com São Pedro. Custa sonhar? …

  8. Lula volta para um 4o mandato? Se não, quem está preparando como seu sucessor? Esses pretensos candidatos como Haddad, Dino, Boulos não me parecem factíveis…

  9. Uma coisa é o que o PT quer. Outra é os fatos colaborarem para isto. O PT nunca foi, e nunca será senhor do seu destino. A prova é que estão sofrendo por que achavam que depois da eleição tudo se ajeitaria com a retórica mentirosa e pirotecnia que sempre apresentaram. E os problemas do PT só estão começando... Rsrsrsrs.

  10. Grande artigo! Traduziu perfeitamente, com palavras, o que muitos brasileiros sentimos: o PT veio, e veio pra não sair mais. Esse partido do "amor venceu" dá medo, muito medo.

  11. Duvido que luladrão tenha a menor ideia de que isso seja uma estratégia. O que ele quer é beber, comer, viajar de graça, bostejar em público, ser corrompido e ser bajulado. Ele é e sempre foi um vagab 1bo e pelego

    1. Sim. Lula não tem conhecimento para pensar com estratégias. Ele vai na onda, e por traz vem Gleisi, Zé Dirceu etc. fazendo os cálculos. O Lula é bom de palco, tem que deixar ele lá. E, como todo pobre ignorante que ascendem ao poder, ele quer mesmo é festa, passear, comer do bom e do melhor e mulher (com moderação devido à idade).

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