DivulgaçãoMarcelo Dunlop diante de seu material de pesquisa

Garrincha não disse isso

Frases como “alguém combinou com os russos?” são tão perfeitas que só poderiam ter sido cunhadas a várias mãos
24.02.23

A seleção brasileira estava prestes a enfrentar a União Soviética pela Copa do Mundo de 1958. O treinador Vicente Feola se dirigiu a Garrincha e instruiu: “Você recebe a bola e dribla o lateral russo. O quarto-zagueiro virá na cobertura e você o dribla também. Já na linha de fundo, cruze para a área, onde Vavá estará livre, porque o zagueiro central terá saído para cobrir o quarto-zagueiro“. O craque das pernas tortas concordou, mas disse uma frase que se tornaria um clássico dentro e fora de campo: “O senhor combinou com os russos?”. A história é ótima, mas nunca aconteceu.

Biógrafo de Garrincha, Ruy Castro nega em vão, há anos, que a cena tenha ocorrido. Questionou diversos jogadores que estavam naquela mesma sala e não ouviram o diálogo. Mesmo assim, o conto segue sendo reproduzido. Não há registro ou testemunha que comprove a cena, mas surgiu uma indicação de onde a história pode ter saído. Anos antes, o treinador José Foquer instruiu Serafim Ribeiro, o ponta-esquerda do Corinthians conhecido por Pipi, a cair pela ponta direita e optar pela melhor jogada: driblar e chutar a gol ou passar para um colega mais bem colocado. Pipi replicou: “Foquer, você conversou com eles pra me deixarem fazer isso?”.

Essa história foi relatada por Domingos da Guia, companheiro de Pipi no Corinthians, numa crônica publicada no jornal Última Hora em 2 de julho de 1957 e garimpada pelo jornalista Marcelo Dunlop. O autor da descoberta, que passou os últimos seis anos alternando esse trabalho de arqueologia frasal com seu ofício de jornalista esportivo, conta que já estava desistindo de entender de onde tinha saído a invenção sobre a citação de Garrincha quando topou com uma biografia de Domingos da Guia, escrita por um jornalista inglês chamado Aidan Hamilton.

Essa frase de Garrincha sobre os russos surgia apenas em esparsas colunas de Sandro Moreyra, um cronista filho de poeta e adepto da licença poética por toda a vida”, conta Dunlop, que está lançando O mau humor de chuteiras (Mórula Editorial), com uma série de frases brilhantes como essa, mas com selo de autenticidade.

No livro, Dunlop conta que descobriu, entre outras coisas, que Albert Camus não disse exatamente que “o que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol”. O nobel de Literatura argelino disse algo parecido: “O que sei com mais certeza no longo prazo sobre a moralidade e as obrigações dos homens… aprendi com o RUA”, o Racing Universitaire Algerios, pelo qual jogou como goleiro. Outra: Neném Prancha não disse que o pênalti é uma coisa tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube — mas, para saber a explicação, você vai ter de comprar o livro de Dunlop.

A busca do jornalista carioca pelas frases é antiga. Em 2016, lançou Verissimas: frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo, com máximas de Luís Fernando Veríssimo que nem a família do escritor sabia direito se eram dele. E Dunlop não é o único arqueólogo de frases à solta por aí. Em 2017, foi publicado Hemingway Didn’t Say That: The Truth Behind Familiar Quotations (Hemingway não disse isso: a verdade por trás de citações familiares), obra de um autor que se apresenta como doutor em ciência da computação por Yale e assina sob o pseudônimo de Garson O’Toole. O investigador também alimenta um site, chamado Quote Investigator, em que atualiza seu banco de checagens periodicamente.

Por O’Toole, ficamos sabendo que Ernest Hemingway não escreveu o menor conto do mundo — ou pelo menos que não há prova disso. A emocionante frase “For sale: baby shoes, never worn” (vende-se: sapatos de bebê, nunca usados) provavelmente deve sua concisão brutal à falta de espaço. O cientista da computação achou um anúncio de classificados de 1906 que dizia: “For sale, baby carriage; never been used. Apply at this office” (vende-se, carrinho de bebê, nunca usado. Submeta a este escritório).

O trabalho de O’Toole e de Dunlop foi facilitado pela digitalização das bibliotecas mundo afora. As ferramentas de busca permitem não apenas determinar quem disse o quê primeiro, mas registrar a evolução (ou lapidação) de raciocínios célebres. Os filósofos Edmund Burke e John Stuart Mill escreveram, na Irlanda do século 18 e na Inglaterra do século 19, respectivamente, diferentes versões do que hoje circula em cards pelas redes sociais como “para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada” — talvez você já tenha recebido algo do tipo assinado por Arnaldo Jabor ou Clarice Lispector.

Eu mesmo já me aventurei, durante trabalhos de checagem, a buscar a verdade sobre algumas citações célebres. A mais curiosa delas é algo que o lendário senador Rui Barbosa não apenas nunca disse, como afirmou o contrário. “A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”, teria dito o baiano. Na verdade, foi o senador João Luiz Alves que reclamou da “existência da ditadura judiciária, a pior das ditaduras”. Barbosa, por sua vez, discursou em resposta ao colega: “Agora, é que se quer a responsabilidade para os juízes. Para quê? Para que não nos reste (…) nem sequer o abrigo da Justiça”.

Já minha maior frustração nessa seara era não ter conseguido confirmar a autoria de uma frase do genial George Best, uma citação que resume sua breve e tumultuada carreira de forma tão perfeita que só poderia mesmo ter sido cunhada a várias mãos, ao longo de anos, até chegar na mentira mais verdadeira possível: “Em 1969, abri mão de mulheres e bebidas. Foram os piores 20 minutos da minha vida”. Pois Dunlop também achou registro dessa citação e a incluiu em seu livro, que de mau humor, para mim, não tem nada.

 

Rodolfo Borges é jornalista

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Fica a dica: não repasse aqueles lindos textos de reflexão sem antes verificar sua autenticidade. Recebo cada absurdo e sempre concluo como está fácil enganar os preguiçosos.

  2. As histórias devem ser sempre lembradas para desamargar um pouco este país do bolsolulismo (arghh!). Vi numa extraordinária entrevista do seu "cumpradre" Nilton Santos, a Enciclopédia. Disse q foi história da divertida concentração criada pelo fabuloso grupo campeão de 1958- ele, Zito e Djalma Santos. Parabéns pela lembrança do nosso extaordinário Chaplin dos Maracanães (aquele. saudoso q o midiático luloptismo destruiu). A citação do biógrafo imortal Ruy Castro é imprescindível. Nota 10!

  3. Obrigado pela recomendação de leitura. Estou meio perplexo e meio decepcionado por saber a verdadeira frase de Ruy Barbosa (que também tem muito mérito, ainda que de sentido completamente oposto).

Mais notícias
Assine agora
TOPO