ReproduçãoA igreja de Marienmunster, na Alemanha: o espaço arquitetônico como nunca foi registrado

Arquitetura e música

Como as artes se relacionam umas com as outras, em espaços, dimensões e tempos diferentes
24.02.23

No livro Saber ver a arquitetura, o ensaísta italiano Bruno Zevi critica o fato de as obras arquitetônicas serem apreciadas externa e superficialmente, como se fossem pinturas ou esculturas. De fato, até mesmo em livros de história da arte, o espaço arquitetônico é representado na maior parte das vezes em sua forma exterior. Vemos o Domo de Brunelleschi exteriormente, a fachada da Catedral de Milão, ou a fachada do prédio do Congresso Nacional, em Brasília.

A pintura, diz Bruno Zevi, atua sobre duas dimensões, a despeito de poder sugerir três ou quatro delas. A escultura atua sobre três dimensões, mas o homem fica de fora. Só que a arquitetura é como uma grande escultura escavada: nela o homem penetra e caminha. O espaço interior é o verdadeiro protagonista do espaço arquitetônico – a fachada, por mais bela que seja, é apenas a caixa onde está encerrada a jóia arquitetônica.

Para o autor de A Imagem Autônoma, o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho, a essência da arquitetura não está no exterior, mas no interior: teto e paredes. Assim, o que se vê da rua pertence à arte da escultura – para ele, a mais numerosa das artes, pois incorpora todos os prédios e habitações. A autonomia da arquitetura se manifesta nos vazios interiores. São as “esculturas vazias”, título do texto em que Evaldo Coutinho expõe essas ideias, publicado na modesta revista do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, em 1995. Diz ele no texto: “A esculturalidade do prédio é apenas o invólucro de algo que, este, sim, ostente a matéria legitimamente exclusiva da arquitetura, a que lhe imprime o caráter de gênero artístico”. A afirmação do filósofo pernambucano concorda perfeitamente com a do ensaísta italiano Bruno Zevi, que diz: “Tudo o que não tem no espaço exterior não é arquitetura”.

Com a invenção ou redescoberta da perspectiva no Renascimento, o volume interior pôde ser melhor representado, com três dimensões. Posteriormente, já no século 19, os fotógrafos tomaram o lugar dos desenhistas na representação do espaço, se utilizando de suas objetivas. O cubismo acrescentou uma quarta dimensão à representação arquitetônica, inclusive inspirado pela concorrência da fotografia na representação da realidade, mas o espaço em si transcende os limites da quarta dimensão.

A descoberta da cinematografia marcou uma verdadeira revolução na representação do espaço arquitetônico: ela resolve os problemas colocados pela quarta dimensão. A filmagem registra os nossos passos e uma parte da experiência espacial original. Diz Bruno Zevi: “Se percorrermos um edifício com uma filmadora e, em seguida, projetarmos o filme, reviveremos os nossos passos e uma grande parte da experiência espacial que a acompanhou.”

A matéria-prima do cinema é o tempo – por isso o livro de Andrei Tarkóvski se chama Esculpir o Tempo. O cinema, para o diretor russo, é um mosaico do tempo. Isso ele tem em comum com a música.

Por sua vez, a música tem em comum com a arquitetura serem artes que nos envolvem por todos os lados. Goethe diz que a arquitetura é a música condensada ou petrificada. Na verdade, a frase, constantemente atribuída ao poeta alemão, é uma citação do filósofo Schelling, de sua Filosofia da Arte.

O poeta francês Paul Valéry diz que ambas encerram o homem dentro do homem e preenchem a totalidade de um sentido. Ele diz isso num livro extraordinário – tão apreciado nas escolas de arquitetura que se tornou uma espécie de clichê – Eupalinos ou o Arquiteto. Trata-se de um diálogo imaginário entre Sócrates e Eupalinos, um arquiteto grego. À certa altura, Sócrates diz para o seu interlocutor: “Impor à pedra, comunicar ao ar, formas inteligíveis; apropriar-se muito pouco de objetos naturais, imitá-los o mínimo possível: eis o que é comum às duas artes”.

Existe uma gravação de um concerto bastante salutar na relação arquitetura e música. Mas antes de falar dele, é preciso lembrar: as gravações de concerto não são uma arte em si mesmas. Servem à música. O espaço arquitetônico é ali apenas cenário ou tem função ilustrativa. Porém, existe uma gravação, realizada em 1969 na Alemanha (na igreja de Marienmünster em Dießen am Ammersee), da Missa em Si Menor de Bach, em que nunca o espaço arquitetônico dialogou tão bem com a música. E não é só pelo fato de serem ambas – tanto a igreja quanto a Missa de Bach – barrocas.

É que normalmente a música é personagem e a arquitetura, paisagem. Nesse caso, a música e a arquitetura são igualmente personagens. A gravação, em 35mm, explora com excelência inédita, no tempo da música, durante as duas horas e 11 minutos da missa, a especialidade da igreja, a passagem da luz solar sob vários ângulos, e naturalmente a execução da peça pela orquestra e coro. O espaço arquitetônico e a música – que nos envolvem por todos os lados – como nunca antes havia sido registrado.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro

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  1. Nada mais interessante do que aprender ou aprofundar nossos conhecimentos sobre o sentido da Estética nas nossas vidas. Essa sensibilidade quando apurada, revela também os valores Éticos necessários a vida em sociedade.

  2. ... Texto educativo, elucidativo e enriquecedor. ... Gosto de música e de Arquitetura. ... Gosto de Rock 'n' Roll ... Meus tímpanos e espírito não suportam o que se chama de música atualmente. ... Lixo "musicalizado".

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