Ricardo StuckertLula dá coletiva ao lado do governador de SP, Tarcísio de Freitas, para falar da tragédia em São Sebastião

A torrencial incúria do Estado brasileiro

Já se sabe que, sob o cetro de Lula, os deslizamentos de barro e pedras são democráticos, pois teriam atingido pobres e ricos sem exceção
24.02.23

Sob a batuta do coleguinha gaúcho Paulo Pimenta, secretário de Comunicação do governo Lula, a tempestade de verão que matou e desabrigou moradores de São Sebastião e arredores superou tudo: dos bichos recolhidos à arca de Noé até a pluviometria só conhecida do século passado para cá. Durante os longos depoimentos de repórteres, comentaristas, apresentadores e jornalistas de televisão, rádio, redes sociais, jornais, revistas e boletins, já se sabe que, sob o cetro de Lula, os deslizamentos de barro e pedras são democráticos, pois teriam atingido pobres e ricos sem exceção. Abandonados pelo Senhor de todos, que teria avisado ao patriarca Noé a tempo de construir a arca, onde casais de várias espécies animais sobreviveriam ao dilúvio universal, até a tosca embarcação encalhar no topo do Ararat, em território armênio ocupado pelo império otomano.

Todos os conhecimentos de meteorologia deste escriba limitam-se à audiência cativa do mestre Narciso Vernizzi, nos velhos tempos de Fernando Vieira de Melo na rádio Jovem Pan. Era tudo modesto e até meio tosco, mas muito mais confiável do que a empáfia dos descobridores do óbvio ululante na comunicação de massas contemporânea. É claro que pedras e barro que rolam ladeira abaixo não inspiram clássico de blues nem nome de conjunto célebre de rock. Mas talvez um pouquinho de juízo, sensatez e lógica não fizessem muito mal na cobertura da procura de 40 desaparecidos e na descoberta de 50 corpos encosta abaixo. E numa rodovia importante, paralisada para conserto por dois meses. Não se sabe se o dilúvio universal é fato histórico ou dogma de fé religiosa, mas se conhece que quanto choveu na era pré-pluviometria não se mediu, não se registrou, não se publicou, não se arquivou. Um pouquinho de modéstia de busca de recordes não faria mal ao distinto público emocionado com os desabrigados e curioso em relação aos abonados que, como aqueles, teriam, pelo relato da democracia do temporal, perdido tudo na enchente litorânea.

Sabem todos e tem sido insistentemente lembrado neste agoniante noticiário que o ex-presidente Jair Bolsonaro, inclemente, ímpio e sem empatia, passou a agonia dos baianos sob chuva ao sol do forte de São Francisco do Sul (SC). Novidade nenhuma no currículo sem piedade do capitão-terrorista. Lula, não. Lula estava na Bahia de férias no carnaval e foi a São Sebastião, perto de Ubatuba, cruelmente apelidada de Ubachuva desde os tempos imemoriais de antes de Narciso, o herói grego que se apaixonou pela própria beleza ao ver o rosto em água limpa e fresca. Tenha ou não sido recordista o volume de água desabada sobre as encostas que escorregaram para o nível do Atlântico Sul, ele não terá superado a marca da relação de ministros transportados até a tragédia para tomar conta dos estragos e socorrer as vítimas. Afinal, é um primeiro escalão que ocuparia o triplo da mesa da Santa Ceia para o caso de acolhê-los. Qualquer desinformado, inclusive este autor, sabe também que coração de pedra como o do antecessor nenhum outro governante teve antes “na história deste país”. E, se Deus quiser, não virá a se repetir no futuro.

Certo, meus amigos, meus inimigos, Lula foi, sobrevoou de helicóptero e voltou para o merecido repouso de Momo. Carlos Sílvio, sertanejo de Paiaiá, na Bahia, lamentou nas redes sociais: esses ministros podiam, pelo menos, empunhar uma pá para remover a lama diante da câmera de Ricardo Stuckert, fotógrafo particular de Lula, quando presidente ou ex. Podia até não ajudar, mas seria de bom alvitre, não acham? No entanto, as elites, que governam por escolha dos flagelados que o dilúvio desabriga, não costumam sujar o cromo alemão de seus sapatos com lama, que pode ser democrática, mas não é plebeia.

Lula levou trocentos e quinze ministros às proximidades da praia onde o jesuíta José de Anchieta louvou a Virgem Maria em versos de inspiração e devoção inigualáveis, na areia de Iperoig, hoje Cruzeiro, em Ubatuba, ali pertinho. O missionário escreveu: “Ó doce chaga, que repara os corações feridos, / abrindo larga estrada para o Coração de Cristo”. Os mais devotos identificariam na célebre oração profecia de santo. Mas este ex-seminarista redentorista prefere lembrar, teimoso que é, que o temporal que despejou barro e pedra nas areias em que foi escrita a obra-prima do missionário resultou, não de caprichos meteorológicos, previsíveis ou não, mas da ação humana nefasta que provoca desequilíbrios ecológicos que poderiam ser evitados pelo pulso firme de autoridades conscientes: o mercúrio nas águas dos rios, o desmatamento das matas Atlântica e Amazônica, o excesso de monóxido de carbono na atmosfera, etc.

Mais do que a ira de Tupã, venerado pela confederação dos tamoios, que firmaram o histórico tratado de paz com os ocupantes portugueses na mesma Iperoig de Anchieta, em 1563, ou um descuido de São Pedro, o que provocou as enchentes no litoral norte paulista foi a incúria dos governantes. Fossem presidentes da República, governadores de Estados ou prefeitos municipais, eles, comparecendo ou não, ao sertão da Bahia, à Serra Fluminense, à Grande Beagá e ao palco da última tragédia em águas, com suas péssimas gestões de sempre, nada fizeram para evitar novas enchentes, cada uma mais volumosa do que a anterior. Essas tempestades não são nada democráticas, mas as obras mais visíveis de sua descuidada incompetência. O déficit habitacional, sem solução desde o Império, leva os pobres às encostas proibidas, mas povoadas por desprovidos de teto ou ricaços sequiosos por paisagens inigualáveis e inesquecíveis. E lá eles ficam, mercê da devoção dos políticos de todos os credos ideológicos pelo fait accompli (fato consumado), que tantos votos dá.

Das sete últimas gestões federais, Lula comandou duas e está na terceira. Outras duas foram de Dilma, que ele indicou, e de Temer, com quem evitou duas derrotas à “presidenta” nas urnas, mas não o inevitável impeachment de seu desastrado comando da economia destrambelhada. A indiferença estúpida de Jair dito Messias não esconde essa realidade. Assim como não desculpa anos de governo repetidos pelo ex-tucano Geraldo Alckmin, agora vice-presidente da chapa que despejou o mau oficial do Palácio do Planalto. Ou seja, é a quinta gestão do PT, sendo que a este se deve a carona na chapa dada ao líder do MDB de Eduardo Caranguejo, cujo codinome no propinoduto da Odebrecht, segundo a Operação Lava Jato, define um habitante de lamas e pedras dos dilúvios litorâneos em questão.

“Ó Morada de Paz! Canal de água sempre vivo, / Jorrando água para a vida eterna!”, escreveu o santo poeta. Quem dera, Maria, de quem era devoto, o pudesse, mas nem mesmo a Compadecida, de Ariano Suassuna teria força e poder para vencer o mal feito e mantido pela cobiça da casta satânica que dos palácios suntuosos comanda o destino dos pobres. Esses vivem em choupanas inseguras por culpa de incuráveis imperícia, desgoverno e corrupção.

 

José Neumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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500
  1. Fazemos uma lista de locais que sofrem ANUALMENTE com as chuvas…. Fazemos uma lista de governantes que estão ANUALMENTE vendo as tragédias se repetindo… NÃO temos listas dignas de providências e programas de Governos Municipal, Estadual e Federal que executem seu trabalho com dignidade, pensando no Brasil. Mas …. sabem muito bem embolsar o dinheiro dos impostos tão suado pagos pelos brasileiros Isso é DEMOCRACIA ??? Me faz rir tantos apoiando o tal “pela democracia” E o povo se acabando…

  2. Perfeito! Talvez um dia os flagelados sejam iluminados e percebam que sao seus proprios algozes quando elegem populistas incompetentes.

  3. Artigo fraco e inconsistente do jornalista José Pinto, ligar o Presidente da República de "alguma forma" ao desastre demonstra a "isenção" do nobre colunista. Nenhum prefeito, governador ou presidente da república são imunes a críticas, desde de que realizadas de forma respeitosa e sólida.

    1. E nenhum prefeito, governador ou presidente vai conseguir controlar o tempo meteorológico. Pra tirar as pessoas das áreas de risco, tem que ter onde colocá-las.

  4. Mais um artigo do mestre do jornalismo, José Nêumanne Pinto. Sempre necessário. Obrigado por me citar, mestre. Alegria. Abraço, Carlos Sílvio (Paiaiá).

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