Marlene Bergamo/Folhapress e Isac Nóbrega/PRLula e Bolsonaro: será que os isentões não têm mesmo lado?

Não há simetrias perfeitas

Um centrista é alguém que, sendo arrastado pela corrente cada vez mais para longe da terra, grita que é tanto contra o mar quanto contra a praia
17.02.23

Na natureza não há nenhuma simetria perfeita. (Espera: há? Não há? Vou chutar que não há.) Mas há pessoas que insistem que têm uma simetria perfeita de asco em relação a duas opiniões opostas.

Sim, se orgulham muito dessa simetria; e para provar essa simetria perfeita alguns jornalistas mencionam o fato de que agora estão chamando Lula de pouco responsável, quando antes chamavam Bolsonaro de genocida.

“Está na hora de sair do palanque, presidente Lula”, dizem com severidade respeitosa; uma semi-severidade na maior parte dos casos; o leve franzir das sobrancelhas que fazemos quando discordamos de alguém que amamos e respeitamos, como quando damos uma bronca no nosso pai porque ele não está se alimentando muito bem.

Ninguém, ouvindo essas declarações de isenção perfeita, acredita nela: a falsidade é evidente para todos, menos para a pessoa que faz a declaração. Sua isenção é a de uma mãe que não quer deixar excessivamente claro que prefere um filho ao outro.

***

Em uma casa isolada no campo, à noite, uma mulher vê tevê na sala.

De repente ouve um barulho. Vai verificar o que é: um lobisomem está do lado de fora destruindo a porta com patadas.

Desesperada ela corre até o escritório do marido, onde o encontra lendo jornal.

-Um lobisomem! Um lobisomem está entrando! Vem, temos que fugir!

O marido para de ler o jornal, tira os óculos de leitura, e diz:

-Um lobisomem?

-É! Rápido!

Sem muita pressa ele levanta da poltrona, pensativo.

-Mas… e uma múmia?

A mulher, perplexa:

-Que tem?

-Uma múmia seria igualmente ruim, não?

Ela se desespera e o agarra pelo braço. Puxa o marido até a porta dos fundos. Finalmente saem para a segurança da noite, e se trancam no carro.

O marido recupera o fôlego, olha para a mulher e diz:

-Querida, uma coisa: quero deixar claro que fujo do lobisomem, mas fugiria igualmente de uma múmia.

-Mas por que você está me dizendo isso?

O marido pensa um pouco:

-Não sei! É só que… Não gosto de nenhum dos dois!

-Mas por quê você está falando de múmia agora?

Pelas janelas eles vêem o lobisomem lá dentro da casa procurando por eles de quarto em quarto, urrando, destruindo móveis com as unhas.

-Uma múmia também faria isso – diz o marido. – Não com as unhas, mas…

-QUER PARAR DE FALAR DE MÚMIA?

– É que não quero que pensem que só porque estou fugindo de um lobisomem, que eu gosto de múmia. Abomino os dois igualmente. É importante deixar isso claro…

Enquanto falam o lobisomem sai da casa, ronda o carro, quebra o vidro da janela e devora a mulher. E se aproxima urrando do homem, que diz:

-Meu Deus, como parece uma múmia! São praticamente idênticos! – e dizendo variações disso vai sendo engolido e digerido.

***

Todo mundo se encontra às vezes, meio sem querer, na posição desenxabida de estar no centro entre duas posições antagônicas, e imagino que até Hitler se percebesse (muito de vez em quando) rejeitando duas posições extremas sobre um assunto qualquer, e ficasse pálido de espanto com essa situação bizarra em que o destino o havia metido.

Mas o que diferencia esse centrismo ocasional que a nossa alma atravessa de vez em quando com o assim chamado isentão é que o isentão, aqui olhando pra ele de longe, parece acreditar irrefletidamente que em qualquer situação histórica a verdade sempre está na posição equidistante entre quaisquer proposições antagônicas que dividam o mundo em que ele vive.

E além disso, parece aqui pra mim, ele tem um certo orgulho disso. “Não sou de grupos, exceto do grupo dos que não são de grupos. Sou um lobo solitário.”

Bom, ninguém vive, ou ninguém vive bem, sem ter uma visão mais ou menos heróica de si mesmo. Mas vou sugerir uma diferença entre isentões e não-isentões que talvez explique a raiva entre os dois grupos: que os dois grupos usam metáforas diferentes para ver o mundo.

Para os não-isentões a vida política é uma guerra, para os isentões não é, é uma conversa, uma série de debates, algo construtivo e civilizado. Mas para os não-isentões é de fato (nunca usei a palavra “literalmente” e não vou começar agora) uma guerra. Tem dois lados na guerra, a situação é de vida e de morte, e para eles esse grupo aí de semi-aliados não só não ajuda como fica dando tiros para todos os lados, e, parece mesmo até pra mim, mais tiros pra um lado do que pro outro.

(Porque sempre parece que eles estão dando mais tiros pra um lado do que pro outro? Ora, porque a simetria perfeita, como eu disse lá no início do texto, é uma impossibilidade; ninguém que pense por dois minutos consecutivos consegue acreditar nela. Todo mundo no fundo sabe que detesta mais um lado que o outro.)

Para os isentões, tudo é só um grande debate e eles estão falando as verdades duras na cara das pesssoas. Mas nisso não sei quem está certo. Sob alguns aspectos a vida política é uma guerra, sob outros uma conversa. A realidade é confusa. Na guerra entre isentões e não-isentões, sou um isentão.

Só nunca vão me pegar dizendo “Fui xingado pela esquerda e pela direita, alguma coisa devo estar fazendo certo!”, como dizem que o Maníaco do Parque falou enquanto era conduzido algemado para um camburão.

 

Alexandre Soares Silva é escritor

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  1. De fato é difícil encontrar simetria perfeita quando o seu pão de cada dia depende fortemente de um dos extremos. Das mentiras monetizadas ao patrocínio chapa-branca. Infelizmente esse é um país no qual a verdade e a honestidade não compensam (vide O Antagonista). Essa é a terra do conchavo, do anatocismo, do culto ao corpo, da malandragem ... Merecemos o lobisomem E a múmia.

  2. Nada contra quem é de direita ou de esquerda, mas quando o representante de um destes lados é um mau-caráter, aí não tem como apoiar …

    1. Mas e quando os dois têm mau caráter? Aí ficamos entre o lobisomem e a múmia.

  3. Leva tempo para chegar a essa percepção. Muitas coisas contribuem para nos afastar desse nível de maturidade (perdoem a falsa modéstia).

  4. Considero muito pertinente e, até corajoso, este comentário pelo fato do corporativismo fortíssimo habitado no jornalismo, mas, caro Alexandre, a doçura da crítica é, para mim leitor, muito semelhante à da mãe do SEU filho pródigo protegido "secretamente". Para mim são indecentes, pois mau-caráter. De qualquer maneira gostei. É dos poucos artigos, que leio, falando em travestis da mídia; lobisomens do poder e pior, luloptista (e ou bolsonarista- claro, também ele!!).

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