Foto: Adriano Machado/Crusoé

Quem é eleito radical, tem incentivos para permanecer radical

Políticos dos extremos ideológicos são muito mais vigiados pelos seus eleitores do que os tradicionais. Qualquer negociação normalmente é interpretada como traição
17.02.23

Imagine um aparelho que permite ao usuário escutar apenas o que ele gosta de ouvir. Um filtro auricular imperceptível que modifica os sons das palavras de modo que cada um capta apenas o que lhe interessa, não importando o que outras pessoas falem. Dotado de machine learning, sua promessa é trazer felicidade. Aprendendo com as preferências do seu dono, o aparelho rapidamente descobre o que se conecta à sua visão de mundo e ajuda a criar uma percepção, também chamada de “narrativa”, que lhe é totalmente favorável e compatível. Versões mais caras vêm com um cancelador de ruídos que torna a experiência mais imersiva.

Apresentado com o slogan “ser feliz só depende de você”, o produto é um sucesso instantâneo. O receio inicial dos especialistas, de que a interação entre as pessoas deixaria de acontecer, é superado pelo fato de elas continuarem se encontrando e conversando. Pelo contrário, passaram até a falar mais, perdendo seus filtros sociais, também conhecidos outrora como bons modos e educação, verbalizando por instinto e sem maiores cuidados. A sensação de liberdade e conforto descrita pelos clientes é insuperável.

Problemas acontecem apenas quando a bateria de um dos aparelhos falha: ao escutar o que as pessoas falam realmente e perceber a contradição entre a narrativa e a realidade, alguns entram em choque e, não raro, cometem violência contra si e com outros. Mero efeito colateral.

O problema mais sério ocorre na política. Sem foco e abordagem factual dos problemas práticos, a qualidade das decisões e das políticas públicas cai. Os debates no Congresso Nacional perdem pragmatismo e tudo passa a se resumir em disputa de visões de mundo entre facções cada vez mais radicais.

Não demora e a instabilidade chega ao processo eleitoral. Os líderes eleitos não são reconhecidos pelo lado perdedor, que adota posição intransigente, tornando os governos frágeis e ineficazes. A falta de resultados compromete a confiança e os índices de suporte popular ficam restritos às falanges de seguidores. A preocupação de atingir o eleitor mediano evapora e a comunicação política se volta exclusivamente para manter apoiadores ativos e mobilizados.

À essa altura, é possível que você já tenha matado a charada: ele está falando do impacto negativo do algoritmo das redes sociais sobre as pessoas e o sistema político. Mas, não. Pelo menos, não tão rápido….

Um mundo onde indivíduos só escutam o que querem ouvir e não dialogam realmente foi o pano de fundo do romance Auto de Fé, de Elias Canetti, publicado em 1935 e tornado célebre muito mais tarde, quando o autor recebeu  o prêmio Nobel de 1981. Nele, os personagens distorcem as experiências vividas e as falas dos seus interlocutores de acordo com seus interesses e suas crenças. Ninguém conversa verdadeiramente, porque não há troca. É como se cada um tivesse o seu algoritmo interno instalado já de fábrica.

O pensador francês Alexis de Tocqueville, em 1835, ao analisar o nascente regime democrático americano, avisou que um risco existente era exatamente que cada homem se aprofundasse excessivamente nos seus próprios negócios, uma possibilidade nova considerando a decadente sociedade de castas europeia que não dava muitas opções às pessoas. Ao cuidar apenas da própria vida, o cidadão tenderia a se desinteressar da vida pública, abrindo espaço para abusos de poder e construção de tiranias.

O fato é que as instituições se preocupam em promover a interação e a troca. Especialmente as regras que obrigam a formação de maiorias qualificadas para a votação de grandes mudanças, como as PECs no Brasil, que existem exatamente para forçar consensos a partir de concessões mútuas das partes envolvidas. Trata-se do coração da ideia de democracia madisoniana, referência a James Madison (1751-1836), político e pensador importante para a democracia dos Estados Unidos porque a despiu do seu significado clássico, de participação direta e altruísta do cidadão livre, e a vestiu com outro mais realista, um sistema de interação entre ambições egoístas que resulta, a partir da interação, em um bom resultado para o bem comum.

Mas, e quando as instituições de interação deixam de funcionar?

Estudo recente sobre engajamento de parlamentares nas redes sociais produzido pelo DscLab (IBr), mostrou que os dez deputados com maior nível de engajamento estão nas extremidades ideológicas, sendo 9 do PL e 1 do Psol.  É coincidência que os mais populares nas redes sejam também os mais radicais? Mesmo sendo um item interessante, no entanto, esse não é o problema.

A questão é que esses parlamentares, hoje, não possuem incentivos para interagir. Quem é eleito por uma máquina radical, tende a permanecer radical porque é muito mais vigiado pelos seus eleitores do que os políticos tradicionais. Qualquer sinal de negociação ou transação com outros campos do espectro político pode e normalmente é interpretado como deserção ou traição, colocando sua reeleição em risco.

Ainda está fresca a memória do destino da deputada Joice Hasselmann, eleita em 2018 com mais de 1 milhão de votos, mas que abandonou o bolsonarismo e foi derrotada em 2022 com o apoio de apenas 19 mil eleitores. Nos Estados Unidos, alas do partido Republicano estão sendo analisadas como tendo perdido interesse em vencer a eleição presidencial para não terem que fazer concessões em relação aos seus valores. Preferem ficar na oposição, sem responsabilidade de participar de grandes consensos e de transacionar opiniões, mantendo assim o suporte mobilizado de eleitores radicais.

Há uma sensação de que as instituições não estão mais dando conta desse isolamento cognitivo potencializado. Os sistemas eleitorais, os mais importantes mecanismos de diálogo social das democracias modernas, têm sido incapazes de conduzir moderados às arenas de decisão e ainda oferecem estímulos para que os radicais que lá chegam permaneçam assim. Nesses casos, a solução costuma ser a abertura de janelas de reforma.

O ser humano, dificilmente se muda. Mas é possível inovar e incentivar comportamentos de troca, diálogo e criação coletiva. Além da oportunidade de mercado para o desenvolvimento de novos algoritmos que priorizem o factual, a objetividade e a interação com o outro, valorizando o discernimento entre o que é ficção e o que é realidade e incentivando líderes a abandonarem discursos hegemônicos em favor da construção de condições para que as pessoas se desenvolvam com autonomia, e não isolamento.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

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  1. Radicalismo é arma de ignorantes e de déspotas que manipulando um povo deseducado controlam as massas ignaras e os faz escravos adoradores de seus algozes ... o futuro é a tecnologia que prescinde liberdade e equilíbrio entre os fatores de produção e sociais e não por acaso o radicalismo comuno-fascista fracassou em TODAS nações onde o implantaram esta a dura verdade.

  2. Procurei na Amazon e não encontrei esse dispositivo. Deve ter esgotado! É triste, mas o mundo tá perdendo a civilidade …

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