DivulgaçãoCate Blanchett, em 'Tár': falar de si mesmo não é obrigatório no cinema

“Tár”: olhar para si ou para o outro

Nos filmes autorais e engajados (que são praticamente a totalidade dos filmes brasileiros exibidos em festivais) o “falar de si mesmo” é obrigatório
10.02.23

O filme Tár, de Todd Field, começa com uma longa sequência em que um entrevistador apresenta a maestra Lydia Tár, protagonista do longa-metragem e suas glórias profissionais no mundo da música a uma plateia que espera para ouvi-la falar. A sequência tem três minutos, é extensa e produz um certo mal-estar no espectador – é um pouco chato ter que ouvir essa enxurrada de informações curriculares. O que se espera de um filme é que mostre, e não informe.

Independente de qualquer julgamento de valor sobre o filme, ele representa bem um ambiente cultural em que falar de si mesmo virou algo central. Isso está no cinema documentário brasileiro – Petra Costa, por exemplo, usa da própria biografia para abordar a história recente do Brasil, o MBL parte da história dos integrantes do movimento para explicar a história do impeachment – está também no cinema brasileiro de ficção, recordista em cinebiografias (principalmente musicais). 

Nos filmes autorais e engajados (que são praticamente a totalidade dos filmes brasileiros exibidos em festivais) o falar de si mesmo” é obrigatório. Vemos cineastas negros que retratam nas telas a experiência de serem negros, cineastas gays que tratam das próprias descobertas sexuais, cineastas que vivem na periferia retratando a vida na periferia. Pode parecer entediante e é mesmo. Mas não é só isso. Mais grave é quando esses critérios de fazer arte a partir da própria circunstância pessoal passam a ser impostos. Em 2020, quatro roteiristas da série sobre Marielle se demitiram. O motivo?  A indignação porque “os principais criadores da série são brancos”. E a representada, Marielle, era negra. Em Portugal, uma peça de teatro foi interrompida por uma travesti que protestava contra uma personagem trans ter sido interpretada por um ator cis. Depois disso o ator foi substituído. Até a reação ao filme Tár teve esse componente identitário. Marin Alsop, um das maestras mais conhecidas do mundo da música erudita, declarou que não se sentia representada como mulher e lésbica no filme.

Disse ela em entrevista à imprensa inglesa: “Todas as mulheres e todas as feministas deveriam se incomodar com esse tipo de representação porque não se trata realmente de mulheres regentes, não é? Se trata de mulheres como líderes em nossa sociedade.” Alsop foi além. “São tantos os homens, reais e documentados, que Lydya Tár emula com seu comportamento problemático e cruel, mas o filme coloca uma mulher no papel, dando a ela todos os atributos desses homens”, disse. “É um filme antimulher. Supor que mulheres vão se comportar de forma idêntica aos homens ou ficar histéricas, loucas, insanas é perpetuar algo que já vimos no cinema tantas vezes adiante.”

Cate Blanchett, atriz principal do filme que concorre ao Oscar de melhor atriz, defendeu o longa. Ela afirmou que o filme é sobre poder e não tem gênero. “O que Todd Field e eu queríamos fazer era propor uma conversa. Não há respostas certas ou erradas em obras de arte. Não é um filme sobre regência, e acho que as circunstâncias do personagem são totalmente fictícias. Olhei para tantos maestros diferentes, mas também olhei para romancistas, artistas visuais e músicos de todos os tipos. É um filme muito não literal”, disse ela. 

Na verdade, o filme é sobre o desmoronamento da carreira da personagem. Ela, do alto do pódio da orquestra mais importante do mundo, foi se isolando e  termina muito mal. Não deixa de ser metafórica essa situação. A exigência de representatividade na arte cria uma dificuldade em tratar do outro – naturalmente, isso leva a um isolamento do artista. Quem advoga pela representatividade identitária na arte deixa o artista preso a si mesmo como exemplar de um grupo social. Arte é entender o outro, é uma conexão. Não é se colocar num lugar de fala. 

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro

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  1. Por essa lógica identitária, então negros nunca poderão representar personagens nórdicos, atuar em óperas italianas, cantar música indígena ou asiática.

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