Foto: Fernando Frazão/Agência BrasilSe não tiver mais Uber, é só esperar alguns anos que o governo resolve

À espera do Sedex-Passageiro

O Uber caiu fora? Sem problema: os Correios abrem licitação para comprar, pintar e equipar (com taxímetros, talvez?) alguns milhões de carros e abrem concurso para contratar alguns milhões de motoristas
10.02.23

O amigo acreditará se eu lhe disser que, por mim, preferia antes estar numa
cela sem janelas no Monte Athos a prestar atenção à política e aos políticos
nacionais? Pois acredite, amigo: eu preferia. E tanto que às vezes (digamos,
cinco dias por semana), faço bem de conta que estou por lá: cabeludo,
barbudo, despejando cinza na cabeça, vestindo uma túnica de estopa
amarrada com esses barbantes finos de kebaberia, com um gato no regaço,
tentando cantar um salmo em grego enquanto chove lá fora. (Na verdade,
quando imagino isso estou no metrô, imprensado entre dois sujeitos ainda
mais gordos e feios do que eu, com fones nos meus ouvidos tocando death
metal, um livrinho fino nas mãos, e me desviando, de minuto em minuto, dos
marreteiros que passam gritando que “chegou delícia, chegou qualidade”. O
Monte Athos foi o país das maravilhas que achei para brincar de ser Alice).

Perdido voluntariamente nesse mundo muito mais pastoril, oloroso e
prazenteiro do que os tais “corredores do poder”, é fácil eu me distrair e
demorar a perceber quer as ignomínias, quer as asneirinhas cotidianas dos
figurões, dos mandatários, dos executores das “políticas públicas”. Foi assim
com a bobagenzinha tão fofa do ministro do Trabalho, esse ministro
ocupadíssimo, que sugeriu que os Correios, bambas da logística, substituam
o Uber, se e quando o Uber decidir nos deixar.

O amigo me permite uma digressão? Ah, permite, eu sei que permite. Ei-la:
quando começou esse negócio de Uber no Brasil, os taxistas o combateram
muito, até com violência, e por isso começaram a se tornar antipáticos e a
ser criticados por todos os lados. Amigos meus diziam que a briga dos
taxistas era a briga do atraso contra o avanço; era a briga do dinossauro
contra a bailarina; a briga do balão contra o aeroplano; a briga da lamparina
contra o holofote. Veja o amigo que eu tenho amigos exagerados, alguns até
meio poetas (mas tudo bem, eu gosto deles). O caso é que não era nada
disso: Uber e táxi são gente levando gente a lugares em troca de dinheiro.
Não há entre eles a mesma diferença de natureza ou, sei lá, categoria que
há entre um ábaco e um smartphone: há apenas a diferença entre ter e não
ter alvará. Com o tempo, todo o mundo percebeu que táxi e Uber são mais
do mesmo, e até os taxistas se acalmaram; hoje até conheço alguns que,
quando exageram na canjebrina, vão de Uber para casa.

De volta ao Ministro e aos Correios: eis aí um exemplo bom da proatividade
do Governo. O Uber caiu fora? Sem problema: os Correios abrem licitação
para comprar, pintar e equipar (com taxímetros, talvez?) alguns milhões de
carros, abrem concurso para contratar alguns milhões de motoristas, e
expedem os milhões de alvarás necessários. Ao mesmo tempo, a Dataprev
cria o aplicativo, e em no máximo dois anos a operação está estruturada e
pronta para entrar em funcionamento. Faltará só a legislação específica ser
aprovada. Mas aí o amigo relaxe: estará nas mãos do Congresso, lugar em que os lerdos correm e os medianos voam. Garanto que a coisa não demora
mais que outro ano e meio.

Quando finalmente tudo estiver ok – quando houver carros, aplicativo e
motoristas empossados e em exercício –, é possível que seu Sedex-
Passageiro (nome novo do Uber brasuca) demore um pouco para chegar,
pois estará a meio caminho entre o Centro de Transporte Operacional e o
Centro de Distribuição Domiciliar (se você pediu de casa; se pediu do
trabalho, o Centro é outro; se pediu do restaurante, outro ainda; e assim por
diante). E não se esqueça: se chamar depois das seis da tarde, ou aos
sábados, domingos e feriados, a tarifa incluirá o valor da hora-extra do
motorista.

Aí o amigo perguntará: e como é que eu me viro nesse interregno de três
anos e meio entre a saída do Uber e a entrada do Sedex-Passageiro? Ah,
sem dúvida um mercado de marreteiros do transporte vai surgir – “chegou
possância, chegou velocidade” – e, nesse caso, pode até ser que o Governo
desista de dar mais serviço aos Correios e se conforme em legalizar na
marra esse serviço novo. Com o nome de “Vambora Brasil!” ou “É Deus no
Céu e Nóis no Corcel Brás”. O amigo talvez não se lembre, mas foi isso o
que aconteceu com as lotações (com quem, aliás, ninguém mexe).

Por essas e outras é que eu prefiro continuar imprensado entre os gordos,
ouvindo death metal e me esquivando da delícia e da qualidade enquanto
sonho que sou monge. E, cá entre nós, amigo: como seria bom se um ou
outro ministro também fizesse a mesma coisa, né?

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500
  1. Um país de espertalhões na política que vivem do nosso dinheiro e um país de imbecís que pagam por isso e riem achando que são espertos!!!! E nunca mudamos….

    1. Orlando adorei o texto, Estou com voce, Que cansaço, Que falta de MORAL de Carater ,Que PUSILANIMIDADE, Que desesperança, Obrigada m´Mil,,,,,,

  2. Fiquei apavorada quando ouvi as primeiras conversas sobre Correios trabalhando como Uber ou IFood. Pego como exemplo aqui no meu prédio. Quando chega uma carta registrada ou uma mercadoria, o entregador da estatal avisa no interfone. Em 2 minutos desço e chego no portão só que ele já foi embora, e no SMS uma mensagem: "Destinatário não encontrado". Esse é o serviço dos Correios!!!

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