Foto: Reprodução"Napoleão em Fontainebleau", de Paul Delaroche; as redes sociais podem nos transformar em Napoleões de hospício

Vai, democracia, baila!

03.02.23

A passagem mais conhecida de “A Cartuxa de Parma”, o romance do escritor francês Stendhal, mostra o protagonista Fabrice del Dongo vagando pela batalha de Waterloo — o confronto que, em 1815, marcou a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte — sem ter a menor noção de que estava no meio de um acontecimento importante. Não é uma experiência incomum: excetuando casos como o do 11 de Setembro, é bastante possível que a gente só se dê conta de ter testemunhado (ou vivido) um momento histórico depois que ele passou. No caso do jornalismo, que um antigo e querido chefe chamava de “registro taquigráfico da história”, é ainda mais fácil errar — aquele momento que a gente considerou “histórico” pode, no longo prazo, se mostrar muito menos importante do que outros aos quais não prestamos tanta atenção. É do jogo.

O problema hoje, potencializado pelas malditas redes sociais, é que alguns dos meus queridos colegas de profissão: a) acreditam que estão o tempo todo diante de “momentos históricos”, ao ritmo de uma batalha de Waterloo a cada meia hora, ou menos; b) acham que a taquigrafia, o registro rápido, não basta para dar conta da grandeza da ocasião: é preciso ser — ao mesmo tempo — instantâneo (no “tempo real” das redes) e elevado, épico, poético. Tudo isso é receita certa para uma overdose de cafonice que, se fosse droga, teria potencial para matar o Keith Richards umas dez vezes; é o que já chamei, em outra coluna, de armandonogueirização do jornalismo. A praga da breguice comovida é fácil de constatar nas Olimpíadas (“vai, bola, baila!”) e talvez mais frequente num tipo de jornalismo televisivo que apela para a “emoção”, mas não se restringe a ele.

Nesta semana mesmo, o novo Congresso tomou posse e o STF realizou sua primeira sessão depois da depredação aos prédios dos Três Poderes nos ataques do 8 de janeiro em Brasília. Ninguém negaria a importância, inclusive simbólica, dessa preservação da normalidade democrática. Mas parece não ser suficiente: o jornalista emocionado precisa dizer que a limpeza da estátua da Justiça, pichada pelos vândalos, “lavou nossa alma”, ou que “a democracia raiou soberana” na volta do recesso do Supremo (“vai, democracia, baila!”). Tudo bem que isso combina com o abraço que os ministros resolveram dar no prédio do STF, que é piegas, mas muitíssimo eficaz: todos sabem que sucessivos abraços na lagoa Rodrigo de Freitas baniram os assaltos dali para sempre. Mas se meter a Walt Whitman escrevendo uma “ode à democracia” só dá certo se você for o Whitman e viver em um século bem menos cínico que o nosso, como foi o XIX.

Agora mesmo, enquanto escrevo (quinta, dia 2), alguns colegas estavam alarmadíssimos com a “revelação” de Marcos do Val de que Jair Bolsonaro teria pedido que ele gravasse Alexandre de Moraes secretamente. Puxa vida, ele ameaçou até renunciar ao cargo. Bastaram algumas horas para que o senador capixaba, notório por sua confiabilidade, dissesse que o ex-presidente não tinha nada a ver com o caso e que ele não renunciaria coisa nenhuma; o “momento histórico” murchou, mas pelo menos ninguém tentou florear nada desta vez.

O armandonogueirismo é uma erva daninha que precisa ser extirpada: o resultado dessas tentativas de “poetizar” o jornalismo é jornalismo ruim e poesia ainda pior. Sugiro humildemente que sejamos menos seres emocionados e mais taquígrafos atentos. Ou que tenhamos um pouco mais de Fabrice del Dongo em Waterloo — reconhecendo que, em meio ao bombardeio dos fatos, a gente às vezes se perde — e menos ambição de fazer “jornalismo literário” a cada minuto.

***

A GOIABICE DA SEMANA

A invasão dos prédios dos três Poderes por aqueles animais bolsonaristas em 8 de janeiro é o que um inglês chamaria de gift that keeps on giving — aconteceu há quase um mês, mas toda hora aparece uma idiotice nova. Nesta semana, Arthur Lira, que acaba de se reeleger presidente da Câmara, contou que 41 invasores tinham sido identificados por terem se conectado ao wi-fi da Casa: imagino as antas dizendo “vim aqui pra quebrar tudo, mas deixa aproveitar essa internet digrátis”. Alguém tem de inventar novas ordens de grandeza para mensurar o tamanho da burrice, porque “mega”, “giga” e “tera” já não dão conta.

Foto: Bruno Spada/Câmara dos DeputadosImagine fazer isso na Câmara e achar que se conectar ao wi-fi seria uma boa ideia

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  1. Tudo um grande ‘samba do crioulo doido’, com o nazifascismo batendo forte por estas bandas. Ficamos entre lulismo e bolsonarismo à falta de uma terceira via, mesmo que apoiada por ‘marchas de mal-amadas’ ao estilo d’antanho. Aquele general nanico ridículo, metido a machão, é um protótipo do brasileiro inculto que vê a si mesmo como um líder messiânico, que merda!

  2. "Modernizar não é sofisticar. Modernizar é simplificar". “O PT é, de fato, um partido interessante. Começou com presos políticos e vai terminar com políticos presos.” Joelmir Beting, (1936-2012) e sua enorme habilidade de síntese. :-)) Ou "O difícil é fazer fácil".

  3. O mais irónico é que essa renovada paixão do jornalismo pela democracia se dá num período em que os 3 poderes se acotovelam pelo poder como nunca: o executivo é liderado pelo maior atentador contra o estado democrático desde 88, o legislativo usa de qualquer subterfúgio para assegurar seu poder de barganha e o judiciário censura, legisla e "edita". Sinceramente fico na dúvida se esse novo papel dos jornalistas é fruto de idiotice, partidarismo ou pura vaidade.

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