Tânia Rêgo/Agência BrasilFeira: o importante é a qualidade do que você lê e não o número de livros?

Os defensores da Cultura Ocidental

Talvez fosse melhor se parássemos de tentar desincentivar as poucas pessoas no país que estão tentando estudar um pouco para além da escola e da faculdade
03.02.23

Todo dia alguém sente a necessidade de ir na internet e dizer que o importante não é o número de livros que você lê, e sim a qualidade.

Sim, sim, rei da sensatez, adido comercial da obviedade, ministro interino da repetição de frases anódinas — todos sabemos! Isso já foi dito tantas vezes que até sinto vontade de organizar a minha vida pelo princípio contrário, e ler só por ler — ir acumulando a leitura de livro atrás de livro sem me importar com qualidade alguma, porque afinal ler livros ruins é útil também, e com eles você aprende como não escrever, como não pensar, e como não sentir.

Mas mesmo que seja verdade essa banalidade do “o importante é a qualidade do que você lê e não o número de livros” — o que leva alguém a querer muito dizer isso? O que o motiva?

Eu mesmo sigo alguns professores de literatura e de filosofia na internet (não quero usar a expressão “influencers culturais”) que recebem muitas perguntas do tipo “Quantos livros o senhor lê por ano?”, “Como faço para ler mais?”, “Ler dois livros por mês é muito pouco?”, “Como faço pra aprender leitura dinâmica?”, e outras coisas do tipo. São dúvidas bobas, talvez, seguindo uma mania de quantificação e performance. Mas também são dúvidas inofensivas.

São geralmente jovens de periferia querendo ganhar alguma cultura, talvez se expressando de um jeito que não agrada muito a sensibilidade de todas as madames e madamos. Eles tem a húbris, o chutzpah, a audácia da pilombeta de querer levantar um pouco a própria cara do lixo a que as escolas públicas e a cultura à nossa volta os condena. E é essa gente que é ridicularizada na internet por cometer o faux pas de supostamente prestar mais atenção na quantidade do que na qualidade da leitura.

(Digo “supostamente” porque eles se preocupam com a qualidade da leitura também, e estão sempre pedindo alguma validação aos seus professores de internet — professor, vale a pena ler Kafka? Mestre, Jane Austen é kosher? E só leem o livro se o professor aprovar.)

Por que sentir raiva justo dessa gente? Quem ouvisse essas reclamações e zombarias acharia que o principal problema do país é que os brasileiros leem demais.

Ou as reclamações contra a turma que quer “salvar a Cultura Ocidental”.

Admito, é fácil zombar deles. Qualquer coisa grandiloquente assim é zombável para a maior parte das pessoas. Todos temos que baixar a cabeça e ter umas ambições mais modestas, meio acanhadas. Parece ainda pior quando essa ambição vem de alguém que mora numa rua sem esgoto, erra as crases como se fosse um jornalista da Folha e estuda numa sala um tanto cafona, como dá pra ver às vezes quando os defensores da Cultura Ocidental estão no Zoom.

Ou as zombarias que acompanham quem faz cursos sobre Alta Cultura. Parte da internet resolveu concentrar todo o seu desprezo na Turma da Alta Cultura — como se o principal problema dos brasileiros é que ouvem Mahler demais.

Alguém tem que deter esses fanáticos da Alta Cultura! É verdade, esse é um problema muito irritante. Sempre que quero ficar sossegado na praia logo chega alguém com uma JBL e começa a tocar o Rondó em Lá Maior para Piano e Orquestra K.386 de Mozart no último volume. Na frente das crianças, das sogras, dos avós!

Meu ponto é que, sei lá, quem sabe, talvez fosse melhor se parássemos de tentar desincentivar as poucas pessoas no país que estão tentando estudar um pouco para além da escola e da faculdade. Por mais que você ache que eles estão fazendo isso de um jeito levemente desajeitado, por mais que você torça o nariz porque eles às vezes escrevem errado ou fazem uma resenha um pouco boba de um clássico, a verdade é que eles são o único esboço que temos de algo que, em quarenta ou cinquenta anos, pode vir a ser um país mais ou menos civilizado.

O historiador inglês Peter Watson escreveu, a respeito dos alemães no final do século XIX, que como o acesso ao poder na Alemanha da época era monopolizado pela aristocracia, a classe média, “excluída do poder mas desejosa de manter algum nível de igualdade, recorreu à educação e à Kultur como as principais áreas em que o sucesso podia ser atingido. (…) A Alta Cultura era, portanto, sempre mais importante na Alemanha imperial do que em qualquer outro lugar. (…) A palavra em alemão é Innerlichkeit, que quer dizer uma tendência para se retirar da política, ou ser indiferente a ela, e olhar para dentro, para o interior do indivíduo.”

Bom, temos à nossa frente pelo menos quatro anos de exclusão do poder, e espero que aproveitemos esse tempo pra abrir uns livros de vez em quando, visitar uns museus, ouvir umas sinfoniazinhas.

De qualquer forma, eu é que não vou desincentivar esses pequenos rastros de Innerlichkeit que apareçam por aqui — mesmo que desajeitados, mesmo que suburbanos, e mesmo que surjam sob uma forma não exatamente como as madames e os madamos gostariam.

 

Alexandre Soares Silva é escritor

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  1. Sensacional. É o cúmulo da ignorância alguém, num país como o nosso, fazer esse tipo de crítica. (…errar crases como se fosse um jornalista da folha, impagável 😂😂😂😂😂)

  2. SENSACIONAL! É exatamente de mais "curiosos" por educação e cultura que o Brasil precisa para ter alguma chance de sair dessa situação.

  3. Perfeito Alexandre! Nosso problema com analfabetismo funcional está muito ligado a essa formação que falta aos brasileiros. Por enquanto se sabe como o populista se utiliza dessa ignorância.

  4. Apenas critica os sujeitos que, pequenos, têm ojeriza pela alta cultura (ou por qualquer traço de cultura, de fato) por associá-la à elite. Ignoram (ou então fazem de propósito) que assim estão condenando o povo a chafurdar no lixo da atual "cultura popular".

  5. Não só livros, leitura diária de jornais e revistas (a tal da "grande mídia", e algumas publicações mais segmentadas, como esta revista), também são muito importantes! Muito jovens não entendem isso, preferindo ver vídeos no Tiktok, ou acompanhar lacradas no Tweeter, por exemplo.

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