ReproduçãoSó tive a felicidade de ver essa cena porque os algoritmos indevassáveis de Mark Zuckerberg descobriram que gosto de gatos

Deixe a rede social para os gatos, não para a política

Facebook, Twitter e assemelhados propiciaram a ascensão de figuras que, como Bolsonaro, governam pela produção de memes e factoides  
03.02.23

No centro da mesa que ocupa o primeiro plano da imagem, há um pratinho de bordas azuis e fundo rosa, na forma estilizada de uma cabeça de gato, com orelhas triangulares. Uma mão entra em cena pelo lado direito do quadro e deposita no prato um item que não consigo identificar. O formato ovalado sugere uma fruta exótica, enquanto a cor vermelho-escura faz suspeitar uma víscera sangrenta. Deve ser um pedaço de fígado cru: só isso explica o miado feliz do gato cinza malhado que agora atravessa a sala correndo para chegar a seu prato. Com as patas dianteiras apoiadas na mesa – deve estar de pé sobre um banco –, ele se põe a morder a iguaria rubra. Só então percebo que o alimento misterioso é… uma beterraba! Nos vinte segundos de duração do vídeo, o gato a devora inteira, emitindo um ruído de satisfação selvagem, entre o miado e o ronrom.

Só tive a felicidade de ver essa cena porque os algoritmos indevassáveis de Mark Zuckerberg descobriram que gosto de gatos. O Facebook sempre me sugere vídeos felinos, dentre os quais o mais inusitado é esse que descrevi, estrelado pelo bichano vegetariano. Aqui em casa, ninguém jamais teve a ideia de oferecer a rubra raiz aos nossos felinos – Pipoca, a gata que hoje nos acompanha (está dormindo ao lado do computador enquanto escrevo este texto), e Sig, Dindi e Cookie, os gatos que já partiram. Aliás, para ser franco, nem os humanos da minha família são fãs de beterraba.

(Algum leitor rigoroso talvez se inquiete com os rumos desta coluna. Desde quando gatos que comem salada se qualificam como tema digno de Crusoé, revista dedicada aos assuntos mais graves do debate público nacional? Peço paciência: por vias tortuosas, ainda chego a Lula e a Bolsonaro – embora eu deva admitir que teria mais prazer escrevendo apenas sobre gatos.)

Foi só por acaso que cheguei ao vídeo da beterraba barbaramente trucidada por um predador doméstico. Ou pelo menos tive a impressão de que foi por acaso, de que o fluxo de textos e imagens da rede social me conduziu insensivelmente ao vídeo. Desconfio que boa parte de nossa atividade on-line se desenrola nesse território de semi-entorpecimento, no qual é difícil diferenciar a resposta automatizada da decisão consciente. Sei apenas que estava conferindo o que as pessoas andam postando no Facebook quando topei com a imagem congelada de um gato comendo alguma coisa esquisita, e se no instante seguinte um clique no mousepad pôs a imagem em movimento, já não sou capaz de determinar se isso se deu por um impulso deliberado ou por uma deliberação impulsiva da minha parte.

As redes sociais nos oferecem uma nova experiência do tédio. Antes delas – aliás, antes da internet –, o insone passava a madrugada em frente à televisão, trocando de canal sem achar nada do seu interesse. Esse esforço de pesquisa encerrava-se no proverbial piscar de olhos ao tempo em que só existia a televisão aberta, com sua meia dúzia de canais, se tanto. Nossas retinas tão cansadas logo se conformavam com um programa de debates sobre futebol ou com uma comédia romântica bobinha cujas melhores piadas se perdiam na dublagem. A TV a cabo multiplicou o número de canais (pelo menos para a classe média alta que podia pagar a assinatura), mas nem por isso solucionou o problema: a oferta ainda ficou na casa das centenas, enquanto a demanda do tédio é inesgotável. Mais recentemente, surgiram os serviços de streaming, cujos catálogos na aparência amplos tampouco resolveram a parada. Ao fundo, sempre ouvimos Mick Jagger cantando (I Can’t Get No) Satisfaction.

Então a rede social veio oferecer uma novidade – ou, pelo menos, uma nova ilusão: graças ao espaço de comentários, nossa insatisfação consegue afinal se fazer ouvir. E se na televisão e no streaming nós apenas consumimos o que a indústria do entretenimento oferece, na rede social podemos todos ser, como se diz no jargão corporativo, “produtores de conteúdo”. Milhões de produtores anônimos no mundo todo agora oferecem conteúdo virtualmente inabarcável. Quem já visitou o espaço de “reels e vídeos curtos” do Facebook sabe do que estou falando. A televisão tradicional obrigava o tédio a se acomodar ao tempo relativamente longo de um filme pego pela metade ou de um episódio de sitcom. Mais ágeis e menos previsíveis, os reels trazem pílulas visuais: pulamos compulsivamente de vídeo para vídeo, ao sabor aleatório do algoritmo que coloca na fila, um atrás do outro, o farol de uma ilha remota fustigado pelas ondas e o caminhão desgovernado que tomba despejando sua carga sobre a estrada. Não nos entediamos mais pela falta do que ver, mas pela saturação de estímulos rápidos.

Em um de seus contos, o escritor argentino Jorge Luis Borges imaginou o “livro de areia”– um livro infinito, que não tem nem primeira nem última página, e que pode ser folheado por horas sem que o texto que lemos jamais se repita. YouTube, Instagram, Facebook criaram a versão audiovisual desse objeto de pesadelo. O repertório de vídeos das redes obviamente não é infinito, mas excede em muito a capacidade de atenção humana.

A variedade temática, no entanto, é estreita. No Facebook, onde encontrei o simpático gato da beterraba, daria para juntar os vídeos em umas poucas categorias: desastres naturais (furacões, tornados, terremotos); acidentes automobilísticos; portentos da engenharia (arranha-céus de Dubai, represas gigantescas da China); aulinhas de matemática, de ciência, de pseudociência; maravilhas da natureza (ondas gigantes parecem ser muito populares); animais selvagens e domésticos, e animais selvagens criados em ambiente doméstico (só eu fico inquieto ao ver uma criança de quatro ou cinco anos brincando com uma jaguatirica?). Muito eventualmente, aparece algum vídeo-meme de tema político. Há alguns anos, as redes sociais, com o Facebook à frente, foram muito criticadas por permitir a livre divulgação de desinformação política e de “discurso de ódio”, às vezes propagado por pessoas reais, às vezes por bots (e bots russos, segundo a lenda). Zuckerberg foi até chamado a depor em uma audiência do Senado americano, em 2018. Os vídeos curtos parecem servir ao esforço publicitário de reconfigurar a rede como um meio para conectar e não dividir as pessoas. Não que a defesa do autoritarismo e o ataque à democracia tenha desaparecido do Facebook. Mas, pelo menos, depois do texto saudando o carinho com que o novo governo do velho presidente trata os companheiros Maduro e Putin, e antes do meme denunciando índios venezuelanos misturados aos vândalos de Brasília e esquerdistas de verde-amarelo infiltrados entre os yanomâmis brasileiros (ou é o contrário?), você encontra imagens de bichos fofos comendo vegetais saudáveis.

O problema maior das redes sociais, porém, talvez não esteja tanto na informação falsa e perniciosa que se veicula através delas, mas no modo como a informação, boa ou ruim, circula por lá: fragmentada, desprovida de contexto ou hierarquia, em uma geleia geral de dados e distorções, fatos e mentiras, opiniões embasadas e palpites irresponsáveis. O mecanismo viral e memético que conduz nossos passeios inocentes por vídeos de cães, gatos e ondas gigantes parece se reproduzir na busca de conteúdo supostamente “sério”.

Foi também em um misto de distração e deliberação que entrei no Twitter de Eduardo Bolsonaro. Buscava alguma informação para uma coluna anterior que não tinha a ver com o filho 03, e não sei como cheguei tão longe, ou tão baixo: apareceu na minha tela o tuíte em que o popular Dudu Bananinha celebrou o primeiro pedido de impeachment protocolado contra Lula (o primeiro de seu terceiro governo, bem entendido). Não foi iniciativa do Bolsonaro, mas de um deputado do PL gaúcho que atende pelo nome de Ubiratan Sanderson. A base para o impeachment estaria no fato de que Lula vem qualificando o impeachment anterior de Dilma Rousseff como um “golpe”, o que constituiria, diz o tal Sanderson, um atentado contra a Constituição e os poderes da república. “Não daremos folga”, anunciou Eduardo Bolsonaro – que acaba de ser escolhido como líder da minoria na Câmara – no tuíte celebrando a iniciativa do colega de bancada.

Na coluna que por acaso saiu em 8 de janeiro, eu mesmo afirmei que a impostura do “golpe de 2016” constitui, sim, um ataque à democracia. Mesmo assim, ri de mais essa bravata do Dudu. Não vai dar folga? Por favor! Quem acreditaria que essa velha mentira petista constitui base para o impeachment? Bolsonaro, o pai, foi pródigo em ataques bem mais agressivos à democracia, e nenhum deles fez mover qualquer um dos mais de cem pedidos de impeachment na gaveta de Arthur Lira. Se é só isso o que o líder da minoria e seus colaboradores têm a apresentar, a “folga” do atual governo não está ameaçada.

Na verdade, o pedido vazio de impeachment e o tuíte do 03 servem para não dar folga à turba bolsonarista, que precisa ser animada neste momento de dupla derrota – nas eleições e na tentativa violenta de invalidar o resultado das urnas. O jogo político do ex-presidente, de seus filhos e asseclas sempre teve como base o fato irrelevante e a provocação fátua. Bolsonaro governava produzindo factoides que repercutiam tanto nas redes quanto na imprensa: o vídeo de golden shower no Carnaval, a ofensa à mulher de Macron, a declaração de que não acataria mais decisões de Alexandre de Moraes, a quem chamou de “canalha”, as piadas grosseiras sobre a Covid e as afirmações mentirosas sobre a vacina, para citar só aqueles que me vêm de pronto à memória. Esses destemperos e grosserias mobilizavam os adeptos e lançavam os opositores em paroxismos de indignação. De tédio, ninguém morria.

Jair Bolsonaro é um político feito para e pelas redes sociais. É incapaz de um discurso minimamente coeso, faz má figura em programas eleitorais e se sai ainda pior em debates televisivos (até Lula, em péssima forma na campanha do ano passado, conseguiu superá-lo). O meme e a live são seus veículos. Talvez se explique assim o elemento ridículo do movimento golpista que Bolsonaro inspirou e estimulou: a Horda Canarinha não tem ideia de como tomar o poder porque vive obcecada por bombar nas redes sociais. Boa parte dos patriotas que depredaram Brasília invadiram as sedes dos Três Poderes de celular na mão, produzindo ao vivo provas que podem ser usadas contra eles nos tribunais.

As redes sociais já são parte inescapável da paisagem política, e atacá-las é quase tão inútil quanto propor o impeachment do presidente antes mesmo do Congresso começar suas atividades. De resto, em colunas anteriores, manifestei ceticismo quanto à possiblidade de civilizar as atividades on-line pela mão forte do Estado. Twitter, Facebook, Instagram, TikTok e similares só ganharam importância desmesurada porque nós, usuários, lhes conferimos essa importância. Foi péssimo para nossa vida pública? Foi, mas o desgaste da democracia não é causado apenas pelas redes.

Nos primórdios da internet, visionários da tecnologia profetizavam que ela seria um repositório universal do conhecimento humano. Essa utopia iluminista foi pelo ralo há tempos. Hoje, já estará de bom tamanho se as pessoas frequentarem as redes sociais apenas para ver gatos e beterrabas.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Obviamente que o estado deplorável da nossa democracia não é culpa das redes sociais, mas sim da eterna falta de educação do nós como eleitoral e da relés categoria dos eleitos, se retroalimentando esses dois elementos.

  2. Esse tal Algoritmo é muito estúpido, há quem chame de Inteligência Artificial. Somente assisti o vídeo, o idiota do algoritmo vai incluir nas Recomendações do YouTube, supondo que tenho gosto por felinos ou por kibe frito. Vai saber.

  3. O mais triste é não perceber que o pobre felino deve ter ficado dias sem comer para devorar com tanta rapidez o primeiro alimento que apareceu em sua frente!!! E tem gente que dá 👍👍 nesses vídeos!!! 😿😿😿

  4. Crusoe contrata o AGAMENON MENDES PEDREIRA, PELO AMOR DE DEUS. Acho que ele ainda vive no Dodge Dart estacionado enfrento ao jornal O globo

  5. Gostando mais de beterraba do que de gatos, acho que ficou muito interessante a reflexão em torno deles porque as redes têm esse poder, de aproximar os supostos opostos ou de distanciar os que supostamente deveriam se atrair, de forma que já não conseguimos acompanhar ou sequer controlar.

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