Adam Jones/FlickrCrianças na capital de Nagorno-Karabakh, em 2015: "corredor da vida" foi fechado pelos azeris

Alerta de limpeza étnica

Em Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, 130 mil armênios, incluindo 30 mil crianças, estão cercados e sem receber suprimentos
03.02.23

Ao final da Segunda Guerra Mundial, os Aliados dividiram a Alemanha em zonas de ocupação. As quatro zonas criadas também seriam aplicadas a Berlim. Era uma situação incômoda para todos: os Aliados ocidentais — Estados Unidos, França e Reino Unido — queriam garantir sua presença na simbólica e estratégica cidade, enquanto a União Soviética reivindicava o direito de ter em Berlim a sede do poder da Alemanha Oriental.

Para forçar a saída dos ocidentais de Berlim, Josef Stálin ordenou, em 24 de junho de 1948, que as tropas socialistas impedissem que Berlim Ocidental fosse abastecida por rodovias, ferrovias e hidrovias. Moscou acreditava que a banda oeste de Berlim em pouco tempo não teria como garantir abastecimento a seus habitantes e, assim, seria desocupada pelas potências ocidentais, abrindo caminho para a unificação de Berlim como capital do que seria uma grande Alemanha socialista.

Berlim Ocidental possuía suprimento de comida para 36 dias e estoques de carvão que durariam 45 dias. As potências ocidentais não tinham condições para forçar o desbloqueio e havia o temor de que ações enérgicas pudessem escalar a situação e levar a recém-pacificada Europa a um novo conflito de grandes proporções. A saída encontrada foi pelo ar: durante os 15 meses de bloqueio, as forças aéreas dos EUA e do Reino Unido transportaram mais de 5 mil toneladas de suprimentos por dia para abastecer os cerca de 2 milhões de pessoas que viviam em Berlim Ocidental. Apesar do alto custo, as potências ocidentais não cederam à pressão soviética, o que levou Moscou a abandonar o bloqueio em maio de 1949 e negociar com Washington, Londres e Paris a organização do condomínio da cidade mais importante da Europa central.

Setenta e cinco anos depois, o mundo assiste a um novo bloqueio. Desta vez não de uma cidade, mas de todo um país: a República de Artaskh. Conhecida também como Nagorno-Karabakh, o país é um enclave armênio na República do Azerbaijão e é internacionalmente reconhecido como parte desse, em uma das muitas injustiças territoriais causadas pela dissolução da União Soviética, a URSS. A manutenção das fronteiras das repúblicas socialistas soviéticas como divisas dos novos Estados nacionais criados em 1991 é a principal causa de tensões e conflitos no espaço ex-soviético e, notadamente, na Ucrânia. Em mais de uma oportunidade, o presidente da Rússia, Vladimir Putin se referiu à dissolução da URSS como a “maior catástrofe geopolítica” do século 20. Putin tem sua própria agenda ao fazer essa análise: a Guerra da Ucrânia é a tradução dessa retórica em ganhos territoriais. No caso dos armênios de Artsakh, não é uma questão territorial. É uma questão de existência.

Em 1923, no processo de formação da URSS, a região de Nagorno-Karabakh — de maioria populacional armênia — foi posta sob administração da recém-criada República Socialista Soviética do Azerbaijão, em vez de ser incorporada à Armênia Soviética. A lógica por trás da decisão era enfraquecer o Azerbaijão, país de maioria muçulmana xiita com história e cultura atreladas ao Irã. Com isso, um grande número de cristãos armênios foi inserido na composição demográfica do Azerbaijão. Por outro lado, o controle azeri em Nagorno-Karabakh mitigava a crescente reivindicação armênia por outros territórios onde havia população e herança cultural armênia, seja da outra república soviética vizinha, a Geórgia — país de nascimento de Stálin — ou da Turquia de Mustafa Kemal Ataturk (kemalista), cuja fundação está intimamente ligada ao genocídio armênio e à expropriação de bens e propriedades dos armênios otomanos durante a Primeira Guerra Mundial.

Durante as décadas soviéticas, armênios, azeris, russos e outros grupos étnico-nacionais viveram em relativa paz em Nagorno-Karabakh, da mesma forma que armênios viviam em Baku, capital do Azerbaijão, há séculos e azeris étnicos habitavam o sul da Armênia desde tempos imemoráveis. Mas a coexistência pacífica terminou no final dos anos 1980: com os processos de abertura patrocinados pelo líder soviético Mikhail Gorbachev, os armênios de Nagorno-Karabakh pleitearam a anexação da região à Armênia Soviética. Os azeris, sentindo-se traídos pelos armênios e com um forte vínculo identitário à região, reagiram. Manifestações a favor e contra a mudança de status tomaram as ruas das principais cidades da região, não raramente terminando em confrontos entre os grupos e em massacres como os de Sumgait e Baku, nos quais armênios do Azerbaijão foram perseguidos e mortos. O governo regional, em acordo com a Armênia, requisitou formalmente a troca de controle, o que foi ignorado por Moscou. Em dezembro de 1991, um referendo aprovou a criação de uma república independente, o que iniciou os confrontos armados entre o Azerbaijão e a região separatista. Na sequência, a República da Armênia apoiou os armênios de Artsakh na sua busca por autonomia no que se tornou um conflito armado de grande escala entre as ex-repúblicas soviéticas pelo controle de uma região que, por sua vez, se enxergava como independente, mas não era reconhecida por nenhum outro país.

A Guerra de Nagorno-Karabakh durou de fevereiro de 1988 a maio de 1994 e teve um cessar-fogo estabelecido sob vitória armênia: os armênios garantiram a autonomia de facto de Artsakh e ocuparam territórios azeris adjacentes à região a fim de garantir a segurança dos armênios autóctones, abastecer a República de Artsakh e ter moeda de barganha em um eventual processo de reconhecimento internacional. O Azerbaijão, por sua vez, protestou. Baku passou décadas acusando os armênios de terem patrocinado uma guerra de secessão e que chegaria o momento que os azeris pisariam novamente em Şuşa — leia-se “Shusha“, em armênio, “Shushi” — cidade mais importante de Nagorno-Karabakh e controlada pelos armênios desde 1994.

Esse momento chegou em novembro de 2020. Após 44 dias de uma ofensiva militar sem precedentes desde o cessar-fogo de 1994, o Azerbaijão retomou o controle não só da cidade — cuja presença armênia é materializada na Catedral de São Salvador do século XIX, bombardeada durante a guerra de 2020 — mas também dos sete territórios adjacentes e de cerca de um terço do que era a região autônoma soviética de Nagorno-Karabakh. Os cerca de 130 mil armênios vivem em pouco mais de 3 mil km², concentrados principalmente na capital, Stepanakert. A maior parte dos suprimentos vem da Armênia por meio de uma única estrada que liga os dois países, o chamado “Corredor de Lachin”, cujo controle depende de tropas russas de acordo com o trato feito pelos mandatários de Armênia, Azerbaijão e Rússia em novembro de 2020 para dar fim à guerra.

Chamado pelos armênios de “corredor da vida”, a estrada encontra-se bloqueada desde 12 de dezembro de 2022, supostamente por ativistas ambientais azeris que estariam preocupados com as condições de mineração na região, alegando que as atividades econômicas realizadas pelos armênios causam grande dano ao meio ambiente. Dentre os chamados ativistas, é possível identificar pessoas ligadas ao governo de Ilham Aliyev, presidente que governa o Azerbaijão desde 2003, sucedendo seu pai, Heydar, que governou entre 1993 até sua morte em 2003 e era o presidente no cargo quando ocorreu a vitória armênia na guerra nos anos 1990. O bloqueio da estrada é, na prática, um isolamento total dos 130 mil armênios do resto do mundo. Afora poucas ambulâncias com pacientes graves que puderam ser transportados de Stepanakert para Yerevan após intervenção da Cruz Vermelha, ninguém ou nada entra ou sai de Artsakh. Apesar da república de facto ter um aeroporto moderno e em condições de uso, o Azerbaijão proíbe qualquer aeronave de atravessar o espaço aéreo de Artsakh, sob risco de ser abatido, o que inviabiliza a criação de um corredor humanitário aéreo a exemplo do que foi feito em Berlim. A situação é agravada pelo inverno rigoroso que assola a região e pelos constantes cortes do fornecimento de gás natural e internet.

Embora haja reações de figuras importantes da chamada comunidade internacional, como da Administradora da Usaid, Samantha Power, ou do Parlamento Europeu, nada foi feito para garantir que os armênios em Artsakh tenham suas linhas de suprimento restabelecidas. Os estoques de comida, combustível e medicamentos estão em níveis críticos. No dia 23 de janeiro, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, telefonou para o presidente do Azerbaijão requisitando a imediata reabertura do corredor sob pena de minar o processo de paz em andamento entre Armênia e Azerbaijão. Até o momento da publicação deste artigo, a estrada permanece fechada, enquanto uma crise humanitária está por chegar, levando a observatórios de direitos humanos como o Lemkin Institute for Genocide Prevention emitir alertas sobre os riscos de “limpeza étnica” na região.

Em um diapasão similar ao de Stalin quando realizou o bloqueio de Berlim Ocidental, Ilham Aliyev espera que o isolamento dos armênios de Artsakh force-os a deixar o país, ou submeta os que escolherem ficar ao controle total por parte de Baku. Após décadas de conflitos e cultivo de um sentimento antiarmênio que serve como amálgama à difusa identidade nacional azeri, os armênios de Artsakh não têm garantias de que terão seus direitos fundamentais respeitados caso se submetam ao autocrata de Baku, restando nada mais do que lutar pelo direito de continuar vivendo nas terras onde o povo armênio reivindica sua origem ancestral, de acordo com suas tradições, costumes e regras. O cenário de guerra na Ucrânia aumentou a dependência do Ocidente dos hidrocarbonetos azeris e diminuiu a disposição das potências em condenar com mais veemência o bloqueio dos armênios de Artsakh. Enquanto o gás de Baku continuar a circular pelos gasodutos em direção à Europa, nenhum avião levantará voo e cruzará os céus de Artsakh em busca de garantir a sobrevivência de 130 mil pessoas, incluindo 30 mil crianças. A resiliência ocidental ao bancar 15 meses de abastecimento aéreo em Berlim, em que pese o risco de uma Terceira Guerra Mundial, não se repete no Cáucaso Sul. Ao que parece, os armênios precisam ser resilientes sozinhos, mais uma vez.

 

Heitor Loureiro é historiador

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  1. Estava a par da situação por ter visto essa edição do "Latitude". Como bem dito, a incapacidade do Ocidente pressionar o Azerbaijão pela necessidade do gás e da Rússia, garantidora da paz na região, por ter toda a atenção concentrada na Ucrânia, vai causar novo desastre. Infelizmente acho pouco provável que não deflagre novo conflito que incorpore a região ao Azerbaijão na sua totalidade.

  2. Ótimo artigo! Conhecendo mais da história mundial e da luta dos armênios. Desejo que eles possam encontrar o entendimento e a paz.

  3. O início d texto me lembrou d última viagem d PANAM (Munique-West-Berlin) p/quem eu trabalhava como terceirizada.No nosso contêiner juntaram-se comissários d bordo,engenheiro d vôo,piloto e co-piloto.C/excessão d piloto (pelo menos ñ me lembro) quase tivemos q carregar os outros p/bordo,todos caindo d bêbados.Último dia d emprego d mta gnt dps d anos d trabalho.Tremenda choradeira d tds nós.No dia seguinte a Lufthansa assumiu o controle d rota e nós tds ficamos desempregados.O MURO TINHA CAÍDO.

  4. Gostei muito do bate-papo no Latitude, e achei essa história muito boa, só agora entendo porque na novela da globo a armênia não gostava de ser chamada de turca. Que tudo se resolva em paz

  5. Lamentável! Essas intervenções artificiais de movimentar populações, como aconteceram no desenho das fronteiras soviéticas, lembram as desastrosas introduções de espécies exóticas, como sapos e coelhos, que depois fogem do controle. E Putin quer mais uma vez fazer um intervenção dessas.

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