Alan Santos/PR

Lira: um estadista improvável?

Para tanto, basta que ele defenda os interesses dos congressistas contra a hegemonia do Executivo, em vez de ser cooptado por ela
27.01.23

Desde que o ex-presidente Jair Bolsonaro sinalizou no longínquo 2019 que não faria distribuição geográfica de ministérios em troca de apoio no Congresso Nacional, o país passou a viver o empoderamento dos parlamentares, materializado por um controle crescente do Orçamento e pela participação substantiva no desenho de políticas públicas, mudando o eixo de poder do Executivo para o Legislativo.

Duas histórias ilustram o início desse processo e como ele se desenvolveu. Ainda no primeiro ano do antigo governo, enquanto discutia-se a reforma da Previdência, um investidor externo entrou em contato para saber se havia maioria política ou não para a sua aprovação. O consultor explicou que era difícil saber, considerando que Bolsonaro não tinha uma base de apoio formal. Foi quando ele respondeu: “Você não me entendeu. Quero saber o tamanho da base de apoio do Rodrigo Maia (então presidente da Câmara)”. Bem mais para a frente, um colega notou que os deputados já haviam aprendido o tamanho do poder que detinham fazendo uma aguda observação: “Já percebeu que o Maia vivia pedindo para o (ex-ministro Paulo) Guedes enviar projetos de reforma e que o Arthur Lira não?

A janela de ouro do parlamento, no entanto, recebeu um forte solavanco no final do ano passado. Duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) carregadas de violência simbólica, porque retalharam debates políticos em andamento, reduziram o controle dos congressistas sobre o Orçamento — embora se tenha conseguido que boa parte das emendas de relator tenha se tornado emendas impositivas — e deram ao Executivo licença para furar a regra do teto de gastos sem necessidade dos parlamentares se manifestarem — apesar de o estouro ter sido aprovado depois em votação na Câmara e no Senado.

O escândalo do orçamento secreto — emendas sem indicação dos seus autores – carimbou com uma conotação negativa um debate necessário e, de certa forma, urgente. No parlamentarismo ou semipresidencialismo brasileiro que foi acontecendo por vias tortas nesses últimos anos, surgiu a possibilidade de o país rumar para um sistema que estimule um equilíbrio maior entre Executivo e Legislativo, que pode ser interessante dentro de um contexto de extrema polarização.

Ele se contraporia ao modelo majoritário da eleição presidencial, no qual o vencedor leva tudo. O Congresso contrabalancearia o Planalto, especialmente quando houver orientação ideológica distinta. Pode-se listar possíveis ganhos de transparência e representatividade, mas a principal vantagem para os dias atuais seria deixar o lado perdedor da eleição presidencial mais tranquilo em relação às possibilidades e aos limites de ação do lado vencedor. Tendo garantia de que radicalismos seriam filtrados, sem margem para curvas acentuadas na economia e nas liberdades individuais, o país poderia fazer transições mais calmas.

Mas, como entrar nesse debate sem ser ingênuo? No auge do julgamento da ação de inconstitucionalidade contra as emendas do relator, o presidente Arthur Lira, ao buscar elementos para a sua manutenção, disse que o Orçamento tinha ganho um caráter municipalista que era bom para todos, levando a uma distribuição mais capilarizada e pulverizada dos recursos. O fato, no entanto, mostra que só o presidente da Câmara influenciou isoladamente na alocação de mais de meio bilhão de reais a partir de critérios puramente políticos e partidários, retirando credibilidade de qualquer defesa que ele pudesse fazer das RP9.

Um maior poder do Congresso Nacional também não impediu que Lula estourasse o teto de gastos antes mesmo do novo governo ser inaugurado. A sociedade ou suas partes mais organizadas, como a comunidade de investidores, jornalistas, empresários e economistas que formam o mercado, pode muito bem ter olhado para a aprovação da PEC da Transição e ter se perguntado do que valeu todo o discurso de autonomia do Congresso se, na “hora H”, ele não foi capaz ou sequer tentou reduzir o rombo fiscal solicitado pelo governo. Afinal, desde que se faça uma distribuição adequada de recursos, tudo é possível? Além disso, o país se acostumou a ver o Legislativo armar bombas fiscais e o Executivo ter que correr para desarmá-las. Seria correto imaginar o contrário, que o Executivo quisesse meter o pé na jaca fiscal e ouvir recomendações de moderação de deputados e senadores? Nesse cenário, há chance de as instituições rumarem para o caminho de um controle maior e de até coabitação entre Legislativo e Executivo, dando continuidade à construção do semipresidencialismo brasileiro?

Há. E Lira entra nesse contexto como um candidato não apenas à presidência da Câmara, mas também a estadista, mesmo que nunca tenha tido a intenção de sê-lo. Explica-se.

A dinâmica pela qual é possível chegar ao bem comum a partir da interação entre interesses egoístas está mapeada desde os Federalist Papers — série de artigos publicados por James Madison, John Hay e Alexander Hamilton para defender a aprovação da Constituição americana de 1787 — e que serviram como base da construção da democracias modernas a partir de conceitos de representação, competição entre partidos e controle popular. O princípio do “middle ground”, isto é, do caminho do meio, entre um governo nacional e poderes locais, entre interesses das facções, dos indivíduos e da sociedade e interesses do Legislativo e do Executivo é a chave dessa equação.

Após o STF decretar o fim das emendas de relator, Lira correu para salvar sua promessa de defender os parlamentares frente ao poder crescente do Executivo e praticamente duplicou as emendas parlamentares individuais de execução obrigatória, conservando um grande elemento de independência dos parlamentares. Mesmo sabendo que os cargos controlados e distribuídos pelo Planalto exerçam grande atração para arrebanhar apoio — até mais do que emendas em vários casos — o fato é que muitos parlamentares podem querer manter o protagonismo exercido nos últimos anos e recusem-se e simplesmente a uma adesão cega ao novo presidente. Para manter suas próprias condições de poder, Lira pode ser levado a não apenas lutar por recursos orçamentários, mas a assegurar assento e protagonismo para deputados na “mesa grande” das decisões nacionais.

O subproduto da interação entre o modelo hegemônico lulopetista de lidar com o Congresso e a demanda por recursos e espaço nas decisões que tem marcado a gestão de Lira pode promover a moderação e costurar uma rede proteção contra intenções do Executivo que não contem com consenso na maioria da sociedade. Por exemplo, corre nos bastidores que são boas as chances de os próprios deputados iniciarem a discussão sobre o novo marco fiscal, não esperando pelo projeto do governo e que a medida provisória do Carf, que estabelece que no caso de questões duvidosas em cobranças de impostos, o benefício deve ser do Estado, deve ser derrotada pelos parlamentares pelo argumento de que “ninguém foi conversar com eles sobre o assunto”.

Deputados e senadores possuem toda capacidade de se manterem no polo ativo do processo decisório a partir de condições muito favoráveis. Além de emendas impositivas e fundo eleitoral que ultrapassa os R$ 5 bilhões, há uma maioria conservadora de eleitores que tendem a dar eco para oposição e uma elite econômica disposta a ver o PT ser enquadrado em certos limites. Quantos deputados e senadores são conscientes, querem ou estão à altura de exercer esse papel? O jogo não está jogado, muito longe disso. Ele começa com a eleição para as presidências da Câmara e do Senado, que além do papel tradicional de consolidar a divisão de recursos de poder entre agentes locais e representantes de interesses específicos, terão que decidir, mesmo que não tenham pedido por isso, o futuro do Legislativo e do semipresidencialismo brasileiro.

Lira, muito mais do que sua contraparte no Senado, tem predicados para a tarefa dentro do realismo madisoniano. Não por ser um anjo ou por virtudes de engenheiro institucional, mas por suas qualidades de líder de facção política, força e cumplicidade com seus pares. Para ele se tornar esse estadista improvável, basta que defenda os interesses dos congressistas contra a hegemonia do Executivo, em vez de ser cooptado por ela. A aparente sorte do país é que nem Lira acha que pode cair nas bençãos e fazer parte do núcleo dirigente do governo e nem parece que Lula quer isso, reservando suas graças para Rodrigo Pacheco. Da não cooptação de Lira depende um desenho institucional mais sadio para o país, com um Legislativo capaz de cumprir o necessário papel de moderador de apetites.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

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  1. Não existe salvação institucional para um país no qual a constituição é letra morta, o ordenamento jurídico literalmente ignorado, e onde um poder que subverteu a ordem. Estamos fadados a ser uma ditadura judicial. Acabou. Seremos sempre essa republiquinha de merda.

  2. Bem provável que Lira se reeleja. Corrupto e blindado. # pacheconão, esse é um bun dão. Tão frouxo que já aderiu ao pt!

  3. “Vumbora” pessoal.. pelo menos briguem, xinguem-se mutuamente por aqui..esculhambem-se, mas comentem alguma coisa.. caraco..

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