Foto: Divulgação"As siglas identificadas como de direita nessa contabilização de assentos são partidos do famoso Centrão"

“Não se viola a democracia para proteger a democracia”

Especialista nas relações entre os três Poderes, Pedro Duarte Pinto diz que o Congresso foi negligente na sua função de freio e contrapeso ao STF
27.01.23

O advogado Pedro Duarte Pinto, mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e sócio do escritório MPDP Advogados, afirma que o STF não tem encontrado resistência aparente a assumir os papéis de outras instituições. “O Congresso foi muito leniente, quiçá negligente, em seu papel de freio e contrapeso à atuação do Supremo”, diz ele. “Não se viola a democracia para proteger a democracia.”

Pinto, cuja pesquisa de mestrado é centrada nas relações entre os três Poderes, critica o comportamento do Legislativo no caso de Daniel Silveira — condenado pelo STF e depois indultado por Jair Bolsonaro — e diz que o Congresso aceitou violações que podem fundamentar ações futuras contra outros parlamentares, “independente de serem radicais, de esquerda ou de direita”.

O advogado também afirma que a estrutura da Presidência é pensada para depender do Legislativo desde a Constituição de 1988, mudando só o modo de lidar com os parlamentares — via mensalão, orçamento secreto ou distribuição de cargos no primeiro escalão. Pinto também considera que o novo Congresso, que toma posse nesta quarta (1º), não está alinhado à direita, e sim nas mãos do bom e velho Centrão. Segundo o especialista, os bolsonaristas poderão ter voz ativa na oposição, mas mirando as eleições de 2026, voltados “especialmente para suas bases e para a construção de um discurso de visibilidade política”. Leia a entrevista abaixo.

 

O que mais mudou no nosso presidencialismo de coalizão desde a Constituição de 1988?
Essa expressão designa um fenômeno em que a governabilidade do presidente está vinculada à sua capacidade de formar uma maioria no Parlamento. A nossa Constituição já previu um desenho institucional em que o presidente e o Parlamento estão em interação e negociação constantes. A Presidência, portanto, necessita do Congresso para governar. O presidente não pode, sozinho, ditar a legislação. Também não aprova o Orçamento. Ele está limitado nessas funções. Ele precisa do Congresso e, para tanto, é necessário o uso de seus poderes e prerrogativas para a formação de apoio e de sua coalizão.

Como isso acontece?
Um mecanismo clássico é a distribuição de cargos ministeriais aos partidos aliados. Durante os governos FHC, Lula e parte do governo Dilma Rousseff, houve respeito a uma proporcionalidade do tamanho da bancada e formação de uma base aliada. Com a acomodação do PT na Presidência, passou a haver uma quebra dessa proporção, com o partido almejando maiores espaços para suas diversas correntes. Como consequência, foi necessário recorrer a outros meios para garantir a formação e manutenção da coalizão — por exemplo, o recurso ao mensalão. E mais: historicamente o desrespeito a essa proporcionalidade aumenta o descontentamento da base aliada e pode ser visto como causa, ainda que remota, da própria remoção do presidente, como ocorreu no impeachment de Dilma e de Fernando Collor.

Jair Bolsonaro distribuiu cargos respeitando essa proporcionalidade?
Especialmente em seus primeiros anos, em que houve a adoção da formação dos ministérios por critérios supostamente técnicos, diferentes do da proporcionalidade da base de apoio, o presidente passou a enfrentar uma resistência maior no Congresso. Foi necessário então o recurso a outros instrumentos, como as emendas parlamentares e o orçamento secreto. Esses mecanismos, embora já existentes entre os meios de diálogo com o Congresso, foram reformulados e adquiriram um papel preponderante nas negociações com o Parlamento, em substituição aos meios que eram até então utilizados. Mas, com esses novos instrumentos, o governo não formou uma base perene, e suas demandas mais importantes – e, por óbvio, de maior dificuldade de aprovação – ao Parlamento deram-se por base temática. Reunia-se uma maioria para aprovação daquele tema, daquela lei.

Isso deve mudar com o terceiro mandato de Lula?
O começo deste governo sugere que o presidente voltou a utilizar essa regra velada da proporcionalidade da base de apoio, com resquícios de uma supervalorização das correntes internas do próprio PT, com a distribuição de espaços para seus partidários. Isso evidencia que nosso sistema político-governamental foi desenhado desde 1988 para ter, sim, o presidente dependente do Congresso. O que variou, e continuará variando, foram os mecanismos e prerrogativas presidenciais que são utilizados para esse diálogo entre os Poderes.

Como tem evoluído a relação entre a Presidência e os outros dois Poderes?
A Presidência, de um lado, permitiu que o Legislativo avançasse, exercendo um controle mais ostensivo no Orçamento, assim como permitiu-se que alguns membros do Congresso ganhassem um destaque que não lhes era peculiar. De outro, também deixou que o Judiciário, em especial o STF, ocupasse um espaço que foi negligenciado pela Presidência. E, nessa expansão, o Congresso foi muito leniente, quiçá negligente, em seu papel de freio e contrapeso à atuação do Supremo. A Corte Suprema voltou-se à análise de matérias e temas que seus próprios precedentes, já de uma era de ativismo, reservavam para a esfera de atribuições dos outros Poderes. Alia-se a isso o acirramento da polarização política dos últimos quatro anos, com a ascensão de um grupo tão historicamente dissonante da Presidência que igualmente trouxe para o Supremo discussões das esferas estritamente políticas. Com a ocupação desses espaços e a expansão de seus próprios poderes, o STF ampliou o seu ativismo já existente, antes reservado a pautas sociais e contramajoritárias, como ocorre com outras cortes constitucionais, e se atribuiu o papel de última palavra também para a política e para as competências executivas e legislativas.

O Judiciário também avançou sobre o Legislativo?
Limitações à liberdade de expressão e liberdades parlamentares, até então fortemente protegidas pelo próprio Supremo, passaram a se tornar cotidianas e a decorrer de simples decisões monocráticas. Presenciaram-se ações voltadas diretamente aos membros do Parlamento, violações de prerrogativas de deputados, como no caso Daniel Silveira, e o Legislativo permaneceu silente. Tudo com a justificativa casuística, “de pessoa”: sob a pecha de se tratar de um “radical”, de um “inimigo” —na acepção do Direito Penal do Inimigo—, aceitaram-se as violações ocorridas. Houve, assim, a criação de precedentes que poderão fundamentar ações futuras contra outros parlamentares, independente de serem radicais, de esquerda ou de direita.

Teremos um Congresso de direita que poderá atrapalhar o governo de Lula?
Muito se alardeou, ao fim do primeiro turno, a formação de um Congresso de direita: uma maioria de direita, que seria indicativa da reeleição de Bolsonaro. É inegável que houve um aumento da representatividade da direita. Alguns nomes de clara expressão bolsonarista e de outras correntes chegaram ao Parlamento. No entanto, não acredito ser possível falar em um Congresso de direita.
As siglas identificadas como de direita nessa contabilização de assentos são partidos do famoso Centrão. O PL, embora tenha contado com Bolsonaro como candidato, é um partido de centro. O PP, de Arthur Lira, é inegavelmente de centro. Republicanos, idem. O União Brasil já estava negociando espaços com o governo Lula e foi contemplado com três ministérios. Lira fala inclusive na formação de um “bloco único” na Câmara, contemplando tanto o PT como o PL.

Vai dar Centrão, então?
Com esses indicativos, acredito que o governo Lula repetirá o histórico de bom trânsito e boa negociação com o Legislativo, inclusive diante do retorno a uma formação ministerial (distribuição de cargos, em especial do primeiro escalão) com o objetivo de formação de base. Além disso, os atos golpistas de 8 de janeiro atribuíram um capital político ao governo Lula e uma unidade de discurso entre os Poderes e em torno do presidente, prejudicando as pautas de direita.

Haverá vozes dissonantes e de oposição dentro do Parlamento?
Sim. Nos governos FHC, o PT e outros congressistas usavam do palanque das Casas para expressar sua discordância e serem ouvidos. Nos governos Lula e Dilma, o PSDB de Aécio Neves e José Serra assumiu essa posição. No governo Temer, PSOL, Rede e PT voltaram a esse papel de resistência. E, no governo Bolsonaro, é possível ressaltar o papel de parlamentares como o senador Renan Calheiros, que exerceu uma ostensiva oposição ao então presidente. No atual governo Lula, estes papéis poderão (e provavelmente serão) exercidos por parlamentares como os senadores Hamilton Mourão, Sergio Moro, Damares Alves e pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto. O Congresso, assim, continuará sendo do Centrão. Os bolsonaristas e membros de direita poderão ter essa voz ativa de oposição, mas entendo que seu alcance será restrito, voltado especialmente para suas bases e para a construção de um discurso de visibilidade política, mirando as próximas eleições.

Após os ataques de 8 de janeiro, o  sr. teme pela manutenção do Estado de Direito no Brasil?
O Estado de Direito é uma construção de um império de normas postas previamente para limitação de um poder absoluto, antes representado pelo rei e, agora, por Estado e governos. Essas regras manifestam-se através, dentre outras coisas, do processo —ou seja, do procedimento, seja penal ou civil. É o respeito a estes risos que legitima que o Estado venha a atuar sob os direitos e liberdades individuais. A cobrança de um tributo, por exemplo, é legítima, desde que ele seja criado e exigido mediante a observância dos procedimentos legais e constitucionais previamente estabelecidos. Esse respeito também é inerente à democracia. A legitimidade da atuação estatal também vem do princípio democrático; o poder constituído também deve observância às regras previamente estabelecidas. E esse respeito não admite relativizações. Não é sustentável a justificativa de infração às normas para prevenir infração às normas, especialmente quando em ambos os polos se tem a democracia como bem jurídico protegido. Não se viola a democracia para proteger a democracia.

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  1. O advogado entrevistado faz uma leitura superficial do centrão, que ganhou ao longo do tempo contornos de centro-direita e mesmo de extrema-direita, enquanto ele só vê ali partidos de centro. Observe-se por exemplo o comportamento de Roberto Jefferson ao longo do tempo. Ou de Carla Zambelli. O erro do entrevistado foi ignorar as bancadas do boi, da bala e da bíblia, que, mais do que os partidos, serviram de apoio à candidatura fascistoide de Bolsonaro e "endireitaram" os partidos do centrão.

    1. Vc é daqueles que os fins justificam os meios ????? Triste

  2. Estamos na beira do abismo.. as hostes das mamatas estão prontas a atacar novamente.. logo logo não haverá saída.. os mensalões serão restaurados indecentemente.. essa é a única linguagem que a claque.. é claque mesmo, e não classe, política brasileira, se movimenta por qquer coisa…quem viver, verá..

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