MarioSabino

Dinorah

02.09.22

Na semana passada, dois meninos pequenos perderam a única avó que lhes restara. Tinha 66 anos, seis a mais do que eu. A morte dessa senhora me levou a pensar que nunca serei avô. Ter filhos não parece ser prioridade para o meu mais velho, e o mais novo tem apenas 16 anos. Não sofro propriamente com essa ideia, mas, se a minha previsão se concretizar, acho que morrerei ainda mais incompleto. A biologia explica: no fundo, somos apenas transmissores do nosso DNA, cercados de um organismo composto por células somáticas que se desenvolveu para proteger os nossos genes. Temos de nos reproduzir antes que essas células somáticas envelheçam e morram. O bonito de ser avô, do ponto de vista estritamente biológico, é ver a nossa carga genética em mais uma geração que cumprirá o mesmo destino.

Deixemos a verdade crua para lá. A notícia da morte da avó dos dois meninos também fez com que eu sentisse uma enorme saudade da minha avó materna (não conheci a paterna). Mais precisamente do colo dela. Até o início da adolescência, o colo de Dinorah — não posso imaginar um nome de cabelos brancos mais apropriado para uma avó — era o meu refúgio. Eu deitava a cabeça no seu colo, enquanto a ouvia sussurrar o terço, que era rezado todos os dias, desde a morte do meu avô. Enquanto Dinorah acariciava a minha cabeça, eu não pensava em nada, não me preocupava com nada, não me sentia desamparado em meio a tanto desamparo.

Dinorah teria hoje 118 anos. Arrastava a perna esquerda, sempre inchada, sempre com uma meia compressora, porque havia tido paralisia infantil e também sofria de erisipela crônica. Nasceu em Salvador, numa família de médicos proeminentes. Não sei se já contei, o meu tataravô foi diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do Brasil, onde há um grande retrato dele, pintado a óleo, no salão nobre da sede histórica da instituição (o retrato continuava lá quando fui a Salvador pela última vez). O meu bisavó morreu de tuberculose, antes de completar 40 anos, na sua luta constante, como médico, contra a doença. Foi um dos fundadores da Liga Baiana Contra a Tuberculose. Há um posto de saúde (antes chamado de dispensário) batizado com o seu nome na capital baiana.

Como a mãe de Dinorah, espanhola, também morreu muito cedo, ela foi criada por seus avós, juntamente com o seu irmão, Annibal, que também se tornaria médico do Exército (serviu na base de Natal, emprestada aos americanos durante a Segunda Guerra Mundial). Dinorah contava para mim como a casa dos seus avós em Salvador era grande e confortável, e eu a imaginava como a casa do Sítio do Picapau Amarelo, de Dona Benta, a avó de Narizinho e Pedrinho, a minha única referência naquela época em matéria de casas grandes e confortáveis. Depois da morte do seu marido, o italiano Trento, sem dinheiro para pagar aluguel, Dinorah passou a viver alguns meses por ano ora com um filho, ora com outro, ora com um terceiro. A casa de Dinorah era a sua mala, para além de uma gaveta na minha casa. Quando estava conosco, eu tinha o seu colo e o sentimento de ter um lar de verdade.

A minha avó renunciou a viver numa família abastada, para ficar com o meu avô anarquista que se instalara em Salvador, no início dos anos 1930, sabe-se lá por qual motivo, talvez o clima quente. Como a família dela era contra o namoro, ambos fugiram para se casar e Dinorah nunca mais voltou à sua cidade natal. Até o Brasil entrar na Segunda Guerra, eles se viram obrigados a mudar constantemente, perseguidos pela polícia de Getúlio Vargas, que mantinha ligações estreitas com o regime fascista de Benito Mussolini e cujos meganhas ameaçavam prender Trento. Tanto é que cada um dos quatro filhos do casal nasceu em um estado diferente. Três meninas e um menino. Uma das meninas, a mais nova, foi dada quando tinha 2 anos a Annibal e à sua mulher, Alba, que não podia ter filhos e era especialmente apegada a ela. A princípio, era para a menina ficar com os tio apenas enquanto Annibal estivesse servindo em Natal, mas ela nunca mais voltou a morar com os pais. Alba pediu a Trento, ajoelhada e aos prantos, para que a deixasse ficar com a menina. Tinha uma vida de abundâncias com os tios e com os pais poderia experimentar certas penúrias.

A velha Dinorah, como era chamada desde mais moça pelos filhos, gostava de declamar as poesias que memorizara quando estava na escola. A que mais me marcou foi O Navio Negreiro, de Castro Alves, que ela sabia do começo ao fim. Lembro-me da minha avó declamando especialmente esta parte:

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
São os filhos do deserto
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão…

Com Dinorah, morreram também canções antigas, algumas muito divertidas, porque alusivas em tom de deboche a episódios da política brasileira e das confusões bélicas na Europa, e boa parte da história familiar dos meus antepassados.

Até o final da vida, ela usou o mesmo penteado dos anos 40 e nunca abandonou o chemisier e a saia. Depois da morte do meu avô, acreditou que receberia uma pensão, mas a Itália informou que Trento tinha um filho italiano. A pensão foi para esse filho, fruto de um relacionamento na juventude. Os meus tios e a minha mãe nunca lhe contaram. Ela morreu pensando que a Itália lhe havia negado um direito legítimo.

Em alguns momentos, Dinorah deve ter sido feliz — como quando vivia na grande casa em Salvador e quando fugiu com o meu avô, para casar-se. A felicidade não era assunto para ela, embora gostasse de recordar os bons instantes. Antigamente, as pessoas apenas viviam o que lhes era dado viver, sem essa busca constante pela felicidade.

Dinorah acabaria a sua existência numa casa de repouso, em São Paulo, onde os filhos a colocaram depois que ela passou a sofrer pequenos AVCs em sequência. Nenhum queria cuidar permanentemente dela, as discussões eram constantes e eu, recém-casado, irritado com a minha mãe e com os meus tios, disse num rompante que a saída era uma casa de repouso. Foi o que eles fizeram rapidamente, como se esperassem apenas uma chancela, e nunca vou me perdoar por isso. Visitei-a somente uma vez, ela já meio fora do ar, instalada num quarto com outras senhoras. Cerca de três meses mais tarde, Dinorah morreu. Lembro-me do meu irmão médico descendo a escada da casa de repouso, carregando no braços o corpo dela.

É estranho que, aos 60 anos, eu sinta saudade do colo da minha avó?

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