RuyGoiaba

Falta roteirista para os mentirosos da internet

26.08.22

Depois de mais de quatro anos de colunismo, chega uma hora em que a gente começa a se repetir, embora eu prefira chamar isso de Vale a Pena Ver de Novo. Já especulei aqui sobre algumas profissões do futuro, como especialista em redesignação de signo — se você nasceu canceriano e quer muito virar leonino, o cara vai lá e dá um jeito, se preciso com cirurgia —, cassador de carteirinha de minorias (essa já existe nas redes, só não tem registro pela CLT) e redator de e-mail de phishing. A mim parece claro: certos golpes funcionariam muito melhor se os golpistas não escrevessem atualizassão de çeguranssa nem mandassem mensagem no WhatsApp dizendo que seu cartão do “banco Santo André” foi cronado. É um nicho que o capitalismo tapuia (ainda) não explora.

Outra ideia: um curso de deputado federal for dummies (sim, dummies ainda mais dummies do que as cavalgaduras que já estão lá dentro da Câmara) só com dancinhas interpretativas no TikTok, para poupar as pessoas desse negócio chato que é ler letrinhas. Afinal, nesta eleição Deus e o mundo resolveram se candidatar a deputado por São Paulo — inclusive um monte de gente que põe ketchup na pizza, não coloca purê no dogão e não sabe a diferença entre Mogi das Cruzes e Mogi-Mirim. É razoável imaginar que, em algum ponto do futuro, tenhamos uma Câmara com 36 mil cadeiras e 5.000 vagas só para os paulistas. Ou talvez mandatos-relâmpago, o que nos obrigará a atualizar aquela frase do Andy Warhol: no futuro, todo mundo será deputado federal por 15 minutos.

Mas há outra possibilidade de trabalho muito promissora e que, pelo menos por enquanto, não vejo ser aproveitada como deveria: roteirista de fanfic nas redes sociais. Aqui preciso fazer uma pausa para explicar o termo: no seu sentido original, fanfic é abreviatura de fan fiction, literalmente ficção escrita por fãs — em geral de livros, séries ou celebridades. Por exemplo, a pessoa que ama Harry Potter e, sem ser a J.K. Rowling, escreve sem fins lucrativos uma historinha com os personagens dos livros. Ou o cara que é fanático pelo Faustão e concebe um thriller erótico com o apresentador (oloko, meu!). Os exemplos, assim como as possibilidades do mundo das fanfics, são inúmeros. Não que isso seja bom, claro.

Só que o significado da palavra se expandiu, e hoje é comum chamar de fanfic qualquer história mentirosa que as pessoas contem nas redes sociais, naquele esquema “é verdade mesmo, aconteceu comigo”. Tem até uma hashtag muito usada para sacanear esse tipo de narrativa, que não posso reproduzir nesta revista da família brasileira que é a Crusoé, mas rima com o nome do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho. Muitas vezes, essas histórias padecem de uma lamentável falta de coerência interna: é aí que entra o roteirista de fanfic.

É chato ler o Twitter (ou o Facebook, ou o Instagram) de uma criatura e uma hora ela ser casada, na outra ser solteira e estar pegando geral, logo depois se queixar porque não acha ninguém minimamente decente em algum app de namoro; um dia ser milionária, no outro estar enlouquecida disparando currículos para uns empregos meia-boca, dali a pouco estar curtindo uma linda viagem bancada por seu boy cheio da grana. É como o personagem de um filme que está de camisa social azul quando bate à porta do apartamento e, na hora que abrem, aparece vestindo um cropped pink com lantejoulas. Cadê a continuidade, minha senhora? Cadê a coerência? O roteirista de fanfic vai acabar com esse problema definindo qual é sua personagem, impedindo que ela se afaste demais do arco narrativo e até inventando uns conflitos/polêmicas interessantes para viralizar, gerar engajamento, essas coisas. Suas mentiras se tornarão muito mais factíveis e você ampliará exponencialmente sua base de seguidores otários, para além daquele povo oligofrênico que acredita em qualquer coisa que vê na internet. Aí é só monetizar essa exposição — parceria patrocinada no Instagram, canal no YouTube, fotos desinibidas no OnlyFans, sei lá, se vira — e correr pro abraço.

Enquanto a função de roteirista de fanfic não se viabiliza financeiramente (e para ter um plano B, que é sempre bom), comprei um baralho de tarô para investir numa profissão do passado. Só falta um turbante para virar sensitivo e, com sorte, trocar o jornalismo por outras modalidades de picaretagem. Ligue djá!

***

A GOIABICE DA SEMANA

“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?”, escreveu um dia Álvaro de Campos, o Ruy Goiaba de Fernando Pessoa (perdão, leitores). Em verdade vos digo: ainda bem que ninguém vai escrever a história do que o jornalismo poderia ter sido incluindo todas as barbaridades que só não saíram no jornal ou no site porque algum abnegado evitou o gol contra quando a bola já estava em cima da linha. Não chega a ser barbaridade, mas soube de um site que quase noticiou a viagem da compota de coração de dom Pedro I para o Brasil com o título “Bolsonaro recebe coração de dom Pedro I”. Se saísse, o leitor teria o direito de perguntar se o transplante correu bem — e se o próximo vai ser do cérebro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéParece uma cena perdida de “Frankenstein”, mas é o coração de dom Pedro I

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. ESSA GOIABICE É UMA DELÍCIA, MAS A COMPOTA DE CORAÇÃO E O TRANSPLANTE ENTÃO, QUE COLUNA RECONFORTANTE....CHOREI COM COM O SABINO E CONSOLEI COM RUI

  2. Muito bom. Bom mesmo seria se fosse verdade com o transplante feito pela Nise Yamaguchi. Sugiro nessa hipótese aí que o coração original do Presidente fosse guardado e preservado, não em formol claro, mas sim em cloroquina.

  3. Que fofo, criando uma profissão que que demanda coerência como #skill.. tem que modernizar, esse negócio de continuidade na história, na vida ou mesmo na narrativa é coisa do passado. A coerência pode gerar uma coisa com lógica e ofender aqueles que não conseguem unir 2 neurônios numa sinapse.

  4. (Risos...muitos risos!) Gente! Ruy tem coragem de "sacanear" até a revista Crusoé! rsrsrs Eu, simplesmente, morro de rir!

  5. Muito bom essas goiabices. Seria muito se viesse acompanhado com queijo minas. Adoro goiabada com queijo minas, não só nas sobremesas. Diante de tantas besteiras bestiais atiradas em nós pelos profissionais da opinião pública,as destes espaço são "bobagens" generativas, que confortam. Sérgio Porto, escritor falecido, visionário, autor do livro FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assolam o país, deve estar se divertindo no túmulo.

  6. Parece q colocaram partes do intestino imperial na cabeça de Lula e Bozo. Ambos em uníssono: Flatulência ou Morte!

  7. Fico pensando se D. Pedro I tem ideia do que estão fazendo com seu coração!!! Fazendo compota (ri muito) e enviando para o além mar. Patético.

  8. Sensacional. Fico recompensado em poder ler esta coluna em meio a tanta besteira publicada por aí. É um alívio para o jornalismo. Realmente um Oásis. Uma ilha no jornalismo. Show!

  9. E que coisa mórbida e de mau gosto ficarem circulando e louvando o coração de D. Pedro I pra lá e pra cá. Eca! Parece a história do cadáver da Evita.

  10. O ator Pedro Cardoso, em uma entrevista, disse uma coisa fabulosa: "eu não participo das redes antissocias". Acho que ele tem razão. Eu não participo de nenhuma. Na minha opinião, na grande maioria dos casos, os participantes das "redes sociais" se comportam como criancinhas em uma loja de doces sem a mãe por perto.

    1. José bozomerda acordou com tudo hoje. Procure um médico, fdp.

  11. Cadê a Crusoé que eu assinei? A redação inteira faz fanfic para a conversão para Jovem Pan? Quando começa a coluna do Augusto Nunes? Que p o r r a. é essa?

Mais notícias
Assine agora
TOPO