RuyGoiaba

A civilização fica-nos curta nas mangas

02.09.22

Sou um homem de obsessões colunísticas: os dois ou três telespectadores da TV Gazeta desta Crusoé (eu mesmo, prazer) não devem mais aguentar minhas citações de Nelson Rodrigues por aqui. Outra vítima de pilhagem é Ivan Lessa, de quem costumo roubar o termo “Bananão” para me referir à pátria amada, idolatrada, salve-salve e frases como “o brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também”. Espero que um dia me reconheçam como um Arsène Lupin da crônica, um ladrão que só rouba artigos de finíssimo trato.

Outra das minhas diversões obsessivas é fazer adaptações “estúdios Álamo” (em português mal dublado, sem sincronia) dos clássicos da literatura universal. Por exemplo, Franz Kafka: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama cercado de Brasil por todos os lados”. Ou James Joyce: “Stephen ejetou o polegar em direção da janela, dizendo — Deus é isso. Chuuupa, Parmera! — O quê?, perguntou o sr. Deasy. — Um grito na rua.” Ou Herman Melville: “Trate-me por Ey-ey-eymael, um democrata cristão” (também me empenho em estragar autores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo;/ fui coçar o nariz/ e o sentimento do mundo PLOFT no chão”. Perdão, Drummond).

Mas há dois trechos de livros aos quais retorno sempre, até com mais frequência do que gostaria — geralmente porque o Brasil, esse ônibus circular que vai da barbárie à decadência sem passar pela civilização, me obriga. Em um, Eça de Queirós faz seu João da Ega de Os Maias dizer isto sobre o Portugal do século XIX: “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…”.

O outro está em Tristes Trópicos, livro que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aquele mesmo que detestou a baía de Guanabaaaaara, publicou na França em 1955, cerca de 20 anos depois de ele ter vindo ao Brasil para ser um dos primeiros professores da então recém-fundada Universidade de São Paulo. Foi de Lévi-Strauss que roubei essa história de barbárie, decadência e civilização do parágrafo acima (mas a parte do “ônibus circular” não é culpa dele). No trecho que interessa aqui, o antropólogo chega a ser cruel com seus jovens alunos:

“Nossos estudantes queriam saber tudo; mas, em qualquer campo que fosse, só a teoria mais recente parecia merecer-lhes a atenção. Fartos de todos os festins intelectuais do passado, que aliás só conheciam por ouvir dizer, já que não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos. No caso deles, conviria falar mais de moda que de gastronomia: ideias e doutrinas não ofereciam, em seu entender, um interesse intrínseco, consideravam-nas como instrumentos de prestígio cujas primícias deviam conseguir. Partilhar uma teoria conhecida com outros equivalia a usar um vestido já visto; expunham-se ao vexame” (cito a tradução de Rosa Freire d’Aguiar).

Não sei vocês, mas acho trágico que esses dois trechos, para usar o clichê mais surrado possível, “nunca percam a atualidade”. Vivemos em uma espécie de mix desse Eça com esse Lévi-Strauss: continuamos ansiando por uma civilização que, assim como a boa vida, está sempre em algum outro lugar e, nesse processo, importamos lixo — o que, em outra coluna, chamei de bugigangas mentais — como se fosse ouro, só porque tem a chancela do “país desenvolvido”. Vale para a direita que chupinha desavergonhadamente tudo o que a alt-right dos EUA faz, vale para a esquerda que faz a mesmíssima coisa com o movimento woke das universidades americanas. Aqui no Brasil, a tal “guerra cultural” consiste basicamente em um esquete de Fucker & Sucker, do Casseta e Planeta — dublagem péssima, diálogos ridículos —, só que encenado a sério.

Há solução? Como Dadá Maravilha, não tenho a solucionática para essa problemática, mas suponho que não sermos deslumbrados com qualquer espelhinho sacudido pelos gringos na nossa frente ajudaria; fazer contato visual com o Brasil, por mais desagradável que seja, também é bom. Primeiro resolve o problema de meia população que faz cocô no mato, depois a gente conversa.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Hoje temos de novo nesta seção a ilustre presença de Ciro Gomes, a quem os Smiths dedicaram seu sucesso “Bigmouth Strikes Again” (não é verdade, mas deveria ser). Nesta semana, o presidenciável do PDT está tendo um trabalho danado para mostrar que não odeia pobre depois de ter ido à Firjan detalhar seu plano econômico para empresários e acrescentar “imagina explicar isso na favela”; petistas e demais devotos de Lula, nosso Pai dos Pobres apreciador de Romanée-Conti, estão fazendo a festa com a declaração. Seja como for, Ciro merece o Troféu Justo Veríssimo da semana — mas só porque o Troféu Caco Antibes continua em posse de Paulo Guedes, aquele que acha que tem que parar com esse negócio de empregada doméstica querer viajar para a Disney.

Divulgação/TV GloboDivulgação/TV GloboChico Anysio como Justo Veríssimo, o político que dizia ter “nojo de pobre”

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Como sempre ... consegui sobreviver aos ataques de risos! Uma das qualidades do Ruy é sua honestidade. Qualidade esta que aparece comumente no texto quando ele deixa a entender que: "Se o leitor riu da piada escrita, pode ter certeza de que aquele que a escreveu também o é".

  2. Deixo a sugestão para ler “Surely You're Joking, Mr. Feynman!” e ver o que este brilhante físico pensava sobre os estudantes brasileiros.

  3. Vixiii. Não se pode falar mais nada sem que a patrulha do vocabulário mal interpretado caia de pau! Quer saber? Quero + é q Ciro continue com suas "perolas" . Já que pelo visto não vence as eleições, que pelo menos desmascare tanta hipocrisia ,seja da política, da imprensa, da pretensa intelectualidade, da classe artística e de todo gado que segue os berrantes desses " formadores de opinião " muito tabajaras! Pelas tampas com tanta presepada ativista ! TNC!

    1. Parabéns. Não foi goiabice o que Ciro falou. O que ele disse foi uma goiabada cascão coberta de chantilly. Uma delícia.

  4. ... E um nobre prefeito comprou um Carro de Coleta de Lixo para um amontoado de pessoas com 28 mil exemplares. ... Tem o menor IDH do país. ... Determinou Ponto Facultativo na Aldeia para comemorar tal feito. ... Ponto Facultativo é a segunda maior farsa do Bananão, depois do Brasil bananeiro. ... Vá lá.

  5. Caro Goiaba, não sei se me lês mas aqui vai meu comentário. Primeira parte excelente como sempre. inteligência e cultura com humor que me fazem cativos da sua coluna. Mas nas goiabices , pela primeira vez, discordo. Ciro- de quem não gosto- foi sincero. Claro que o povão não entende suas argumentações. Nem as de FHC, by the way, que foi eleito apenas por ter acabado com a hiperinflação. Ciro me lembrou Mitt Romney que foi gravado numa conversa com empresários e cometeu sincerucídio.

  6. Goiaba esqueceu (ou deixou assim de propósito para outra coluna?) da novela Roque Santeiro e de como o Bananão é representado imortalmente pela Viúva Porcina (e com este nome e nestes tempos famelicos atuais suas chances de sobrevivência seriam praticamente nulas...), o que foi sem nunca ter sido...

    1. Ciro falou uma verdade. Qual o problema de falar a verdade? Perguntei a pessoas (aleatoriamente, a saber pedreiro, taxista, diarista, manicure, feirante ) se já tinham ouvido falar de Simone Tebet, Felipe D’Avila ou Soraya Thronicke. Não sabiam quem essas pessoas eram. Então, não há o que dizer. A falta de informação e cultura é incomensurável.

    2. Não sou cirista, mas será q o q ele falou foi uma inverdade, uma coisa tão ruim? Esse país está muito chato, não se pode falar mais nada q a patrulha do politicamente correto baixa o sarrafo.Na Europa as pessoas NORMAIS já estão se revoltando contra esses absurdos. Que gente mais chata!!!

  7. Deu para rir um pouco e suavizar a sexta-feira. Por outro lado, não sou cirista e entendi como um "tropeço na linguagem" que valeu para os adversários. Mas, que pena, ele é uma opção para sair do bolsopetismo.

  8. Para mim, a goiabice da semana foi a indústria pornô despedir o nosso ilustre Kid Bengala por seu envolvimento com a política. Seus patrões acharam uma desmoralização intolerável a um entretenimento tão querido aos brasileiros.

  9. Pergunto aos cheios de prurido: é fácil explicar economês de rico para catador de lixo??? Hipocrisia pura do luloptismo e demais. Esses pobres (que passarão pelo buraco da agulha) não passarão quem os usa quando querem seus poderosos votos. Um troféu de merda para os bolsoluloptistas. Hipócritas!

Mais notícias
Assine agora
TOPO