Foto: Marcelo Fonseca/FolhapressO Museu Nacional em chamas: não seria a hora de recuperar, ao invés de apagar para sempre?

Pela reconstrução do Palácio São Cristóvão

Enquanto o Museu do Ipiranga recebe os holofotes no Bicentenário, jaz em ruínas o prédio que abrigou o Museu Nacional, onde parte crucial de nossa história se desenrolou
02.09.22

Enquanto o Museu Paulista, que foi construído para rememorar a Independência do Brasil reabre, o Palácio de São Cristóvão, onde a Independência foi decidida, continua fechado e com um futuro incerto.

Durante as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, o que temos de mais midiático – excluindo o custoso e macabro passeio do coração de Dom Pedro I a Brasília – é a reinauguração do Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga. A ideia de um monumento a ser erguido no local do Grito do Ipiranga teve início numa petição da elite paulista ao governo da Província de São Paulo, em janeiro de 1823. Apesar de autorizado, ele não saiu do papel. 

Somente anos mais tarde, com o enriquecimento da província de São Paulo, é que o a ideia de um monumento no Ipiranga tomou força. O projeto original tornara-se tacanho e obsoleto. A Província de São Paulo não era mais a pacata vila de tropeiros onde fora dado o Grito e desejava enaltecer o evento ocorrido na sua terra. O novo projeto escolhido foi o de um edifício-monumento projetado pelo arquiteto italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi, cuja construção teve início em 23 de abril de 1885.

Inicialmente, criou-se um impasse a respeito da utilização do edifício. Depois de algumas dificuldades enfrentadas, decidiu-se que o prédio deveria abrigar uma instituição de ensino: ou uma escola primária, ou de ciências naturais, ou ainda uma universidade. Provavelmente essa sugestão partiu do próprio imperador Dom Pedro II, que insistia que, ao invés de estátuas e palácios, fossem construídas escolas. Com a queda da monarquia, em 15 de novembro de 1889, a construção foi dada por acabada em 1890, mesmo faltando construir as duas alas laterais que dariam ao prédio a forma da letra “E”.

Anos depois, em 7 de setembro de 1895, o edifício finalmente foi inaugurado com a função a que se destina até hoje: ser um museu. Em 1934, juntou-se como Instituto Complementar à recém-criada Universidade de São Paulo e, em 1963, foi a ela definitivamente integrado.

Agora, totalmente remodelado, reformado e restaurado, o Museu do Ipiranga reabrirá para o público neste 7 de setembro. Entretanto, apesar de sua presença no imaginário paulista, nenhuma decisão política ocorreu em suas salas, nenhum ato que determinou os destinos da nação partiu de seus corredores. A construção foi um modo encontrado por São Paulo de demonstrar o seu poder econômico e valorizar a posição do estado no cenário nacional, como palco do nascimento do Brasil Independente. Ao longo de século XX, os paulistas procuraram reafirmar esse discurso. Em 1954, durante o Quarto Centenário da Cidade de São Paulo, foi trazido o corpo de Dona Leopoldina para a cripta construída embaixo do Monumento da Independência e, em 1972, durante os 150 anos da Independência, veio de Portugal o corpo de d. Pedro I. Junto com o quadro do Grito pintado por Pedro Américo, São Paulo ajudou a cristalizar na memória coletiva nacional o 7 de setembro como o momento primordial da nossa independência, quando, na realidade, o Grito foi mais um dos diversos episódios do processo da nossa libertação.

Enquanto o Museu do Ipiranga recebe todos os holofotes neste bicentenário, o prédio que abrigou o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, vitimado por um incêndio em 2018, jaz silencioso. O Museu Nacional, criado por d. João VI em 1818 e instalado inicialmente num edifício no Campo de Santana, foi transferido para o Palácio de São Cristovão, na Quinta da Boa Vista, há 130 anos, em 1892.  Nesse local, o Museu Nacional recebeu visitantes ilustres, como Marie Curie e Albert Einstein, para ficarmos apenas em dois. Ali, a dra. Bertha Lutz chefiou o departamento de Botânica do Museu. Lutz foi uma das mulheres que mais lutaram pela conquista do voto feminino e conseguiu a inclusão da igualdade de gênero na Carta de Criação das Nações Unidas. Assim como Bertha, centenas de cientistas e pesquisadores brasileiros fizeram história na instituição, como Edgard Roquette-Pinto, que, além de pai da radiodifusão no Brasil, foi pesquisador do Museu Nacional e responsável, entre inúmeras outras coisas, pelo registro musical de tribos indígenas em 1912, cujas gravações influenciaram as composições de Heitor Villa-Lobos.

A instalação do Museu Nacional no antigo Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, foi parte de um projeto da recém-nascida República, que pretendia apagar os vestígios do passado imperial. Sede do poder no Brasil, de 1809 a 1889, o Palácio de São Cristóvão foi palco de diversos acontecimentos e discussões políticas importantes. O local abrigou quatro gerações da dinastia de Bragança. Um rei: Dom João VI; uma rainha: Dona Maria II de Portugal; e dois imperadores: Dom Pedro I e Dom Pedro II. Além de Dona Leopoldina, Dona Teresa Cristina, as princesas Januária, Paula Mariana, Francisca, Isabel e Leopoldina. Pelos seus salões passaram estadistas como o conde dos Arcos, o conde de Linhares, o então conde de Palmela, José Bonifácio, Clemente Pereira, Gonçalves Ledo e o Visconde do Rio Branco. E artistas como os compositores Louis Moreau Gottschalk e Carlos Gomes, cantores internacionais, pintores, escultores, literatos, pensadores e filósofos. Em suas salas se discutiu se Dom João VI deveria retornar para Portugal, se Dom Pedro deveria ser deixado no Brasil como príncipe regente e, sobretudo, em 2 de setembro de 1822, durante uma reunião do Conselho de Procuradores das Províncias, se deveria acontecer a separação definitiva de Brasil e Portugal. Quem chefiou esse conselho foi a princesa regente e futura imperatriz, Dona Leopoldina, a primeira mulher a governar o Brasil como uma unidade autônoma e não uma colônia. Dessa reunião é que partiu Paulo Bregaro, o “correio da Independência”, que encontrou Dom Pedro I na colina do Ipiranga, onde seria mais tarde construído o Museu Paulista.

Ali, naquele palácio, Dona Leopoldina recebeu a delegação de senhoras baianas que pediram ajuda para o movimento de Independência na Bahia. Ali Dom Pedro I, após dissolver a Constituinte, reuniu o seu Conselho de Estado e ajudou a dar a primeira Constituição ao Brasil. Naqueles salões, Dom Pedro I viu o Rio de Janeiro se revoltar e assinou a sua abdicação ao trono. Neles também Dom Pedro II cresceu, assumiu a sua maioridade e governou por quase cinquenta anos.

O incêndio que devorou o edifício, suas coleções, arquivos e biblioteca aconteceu no dia 2 de setembro de 2018, exato aniversário de 196 anos da reunião do Conselho de Estado que antecedeu em cinco dias o Grito da Independência. Depois do rescaldo, sobraram praticamente apenas as paredes do antigo Palácio de São Cristóvão. O espaço virou uma tela em branco onde  tudo é possível, inclusive a construção de um edifício de arquitetura contemporânea, para abrigar o que pôde ser salvo da coleção. Esse parece ser o caso, segundo os desenhos que circularam, há algum tempo, de um projeto  para o local. Desde a Carta de Veneza de maio de 1964, produzida pelo II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, entre outros documentos, tem-se tomado o partido de, em caso de total destruição de um edifício histórico, construir-se tudo novo. A reconstrução de como era a edificação antes da destruição seria falsificação histórica. Apesar de entender o argumento, não consigo deixar de pensar que o Brasil e os brasileiros já destruíram demais o patrimônio nacional, para vermos mais um apagamento ocorrer.

O Palácio de Queluz, em Portugal, ardeu inteiro na década de 1930 e foi reconstruído. O mesmo ocorreu com os palácios de Peterhof e Tsarkoye Selo, arrasados pelos nazistas durante a invasão da Rússia, na II Guerra Mundial. Esses países lucrariam bem menos com o turismo e com a valorização de sua história se esses monumentos não tivessem sido devolvidos ao seu antigo esplendor. 

O Palácio de São Cristóvão, ou ao menos as principais salas, poderiam ser recuperadas como eram no passado, segundo as pesquisas do arquiteto Mateus Fragoso no Iphan-RJ. Não seria o caso de inventar nada. Sobrevivem diversos projetos antigos, das obras realizadas durante o Segundo Reinado no Palácio, inclusive com detalhamento de portas e a decoração de salas inteiras.

O escritor Stefan Zweig chamou o Brasil de “o país do futuro”. Mas será que esse futuro só será alcançado com a destruição do nosso passado? Não seria a hora de reconstruir ao invés de destruir, recuperar ao invés de apagar para sempre? Fazer as pazes com parte do nosso passado poderia ser um modo de o Brasil entrar nos próximos 200 anos como uma nação mais bem resolvida consigo mesma.

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  1. Prof Paulo - me permita trazer um fato que vivi e fazer uma comparação ao seu texto, que tenho como o mais pertinente a nossa história: "Certo dia conversar com amigos e um dele falou que tinha viajado a Cidade de Praga e ficou encantado com a cidade e a conservação de seus edifício históricos. Não me contive e disse: aqui nós temos os mesmos edifícios históricos, só que os destruímos em nome da modernidade, apagamos nossa história. No Brasil a história é sempre o amanhã. O Passado não existe.

  2. Não tenho dúvidas do acerto de suas reflexões e análises, senhor Rezzutti, tanto sobre o Museu Paulista, quanto ao Museu Nacional; enquanto o primeiro foi um museu 'inventado' o Museu Nacional foi palco de fatos históricos incontestáveis; já a mitologia histórica criada sobre os bandeirantes e colocar esses personagens como heróis e símbolo dos paulistas, em vez de enaltecer, acabaram revelando o verdadeiro significado daqueles 'paulistas'; é precis preservar o que sobrou do Museu Nacional.

  3. A diferença é que por trás do Museu Nacional tem o governo Federal que não se preparou, para de fato, se comemorar os 200 anos da Independência, enquanto o governo de SP, há 8 anos vem se preparando para este evento. O governo de SP continua sendo a sínteteze do trabalho e o atual governo Federal é a sínteteze da motociata!!!

  4. Sempre aprendo com Rezzutti! Uma delícia acompanhar o canal dele. Também acho um horror esse projeto de um prédio moderno no Palácio São Cristóvão, já não temos quase nada

  5. Parabéns ao arquiteto, Mateus Fragoso, pelo seu belíssimo trabalho de pesquisa. Concordo plenamente com as suas conclusões científicas e as suas propostas para a recuperação do nosso “Palácio de São Cristóvão”. Este é um grande patrimônio cultural e histórico, que temos que recuperar e preservar para esta e as futuras gerações.

  6. 200 anos da Independência tem data e hora.Este museu precisa estar pronto e aberto em 07 de Setembro de 2022.É uma questão indiscutível.É igualmente indiscutível a recuperação do Museu Nacional,fortalecer a cultura e a história de nosso País,abrindo as portas do saber a todas as pessoas de todas as classes sociais.É triste ouvir de pessoas com menos de 30 anos,nada saberem sobre a independência do Brasil e sua importância, não saberem cantar o hino brasileiro até o fim e nem honrar a bandeira.

  7. Tenho 64 anos e, infelizmente, não tenho esperança de ver um presidente que invista de verdade, mas de verdade mesmo na área que é fundamental para resolver TODOS problemas brasileiros. A E D U C A Ç Ã O.

  8. Fiquei emocionada com o texto, que me transportou pela história. Sempre amei aquele museu, uma semana antes da tragédia estava lá com meus filhos, a pequena com apenas 1 ano, já maravilhada com os dinossauros e borboletas. Fiz incontáveis visitas, algumas guiadas, ainda mais ricas. Assisti ao incêndio do hospital em frente, arrasada com o que acontecia. É importante reconstruir e é importante valorizar o que ainda está de pé. Não permitir que se repita por descaso.

  9. O Brasil, para ser um dia O PAÍS DO FUTURO, precisa de um novo grito de liberdade. Precisamos ficar livres do populismo barato, irracional e medíocre, que nos aprisiona há anos. Meu grito de liberdade para o populismo barato é SIMONE TEBET.

  10. O passado que deveria ser destruído não se destrói.Me refiro ao passado populista que até hoje está encarnado na alma dos parlamentares e governantes deste país, com também,o passado econômico, a pobreza, a corrupção,a soberba do judiciário, etc.Isso não muda e tão cedo mudará. Uma mesmice que choca a gente. Bolsonaro ou Lula dará continuidade a esse triste destino. Simone Tebet neles. Sem ela, VOTO NULO!!!!

    1. Concordo. Cansei dessa hipocrisia na política brasileira. Fim da reeleição e de votar em menos pior. Simone Tebet tem coerência e acho que pode sinalizar a insatisfação com a situação atual! Mesmo sabendo que a mudança de comportamento ainda vai demorar muito....

  11. Seria maravilhoso se o Palácio fosse reconstruído para lembrar a nossa história. Não podemos apaga-la, ela precisa ser lembrada. Uma boa ideia seria construir o Museu moderno em outro lugar.

  12. Sempre perfeito Mário, mas desculpe o trocadilho, aqui neste país que adora apagar e queimar seus arquivos, a história e verdades sempre irão para detrás do armário.

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