MarioSabino

ReproduçãoGorbatchov com sua neta, em cena do comercial da Pizza Hut: ele se recusou a comer uma fatia em cena

O dia em que Gorbatchov terminou em pizza

02.09.22
Morto aos 91 anos, ele passará à história como herói no Ocidente e vilão na Rússia. Essa dualidade foi explorada por um comercial da Pizza Hut, produzido em 1997. É o capitalismo, seu estúpido

Mikhail Gorbatchov, morto aos 91 anos, passará à história como o homem que projetou duas imagens diametralmente opostas, a depender da geografia. No Ocidente, é visto como o dirigente que, ao tentar modernizar a economia da União Soviética, implodiu-a (e o verbo nunca foi tão apropriado), permitindo que as repúblicas que a integravam conquistassem a independência da Rússia e que a Alemanha se reunificasse e rompendo a Cortina de Ferro na Europa. Graças a Gorbatchov, com o fim do império soviético, em 1991, a Guerra Fria com os Estados Unidos teve um ponto final e políticos e acadêmicos ocidentais acreditaram que havíamos chegado ao “fim da história” — a vitória definitiva da democracia representativa capitalista sobre o totalitarismo comunista socialista. Por ter-se transformado de mais um burocrata do partido comunista soviético em personagem capital de uma das mais profundas mudanças geopolíticas do século XX, se não a maior delas, e assinado o primeiro tratado de desarmamento nuclear entre russos e americanos, Gorbatchov foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, em 1990. Para os americanos, ele era o “Gorby”.

Para boa parte dos cidadãos russos, contudo, a imagem de Mikhail Gorbatchov é a do homem que relegou a Rússia ao papel de potência de segundo time, humilhou o país frente aos americanos e aos europeus ocidentais, jogou a Rússia na instabilidade política e numa crise econômica que fazia a penúria soviética parecer um oásis de abundância — crise que, na visão russa, rebaixou ainda mais o país frente aos Estados Unidos, que teve de socorrê-la financeiramente. Para completar o quadro, de um regime no qual a propriedade privada era anátema, passou-se ao de um capitalismo dominado por privatizações selvagens, com empresas estatais sendo transferidas para comunistas metamorfoseados em oligarcas. Um deles é Vladimir Putin, oficial inexpressivo da KGB, a polícia secreta da então União Soviética, que conseguiu ser catapultado ao Kremlin pelas mãos de Boris Yeltsin, o bêbado bonachão que sucedeu Gorbatchov na presidência da Rússia — e outra figura humilhante para o país.

Sergei Velichkin/SputnikSergei Velichkin/SputnikGorbatchov e Putin: o segundo quer restaurar o império extinto pelo primeiro
Yeltsin odiava Gorbatchov e a recíproca era verdadeira. No livro Gorbatchev: His Life and Times, o biógrafo William Taubman conta que, certa vez, Gorbatchov disse a um jornalista: “Quando me enforcarem, certifiquem-se de que eles não pendurem Yeltsin na mesma árvore”. Em outra entrevista, perguntado se era verdade que Yeltsin ficava lúcido apenas duas horas por dia, Gorbatchov respondeu: “Sim, mas não todos os dias”. Talvez se passasse mais horas lúcido — e todos os dias –, Yeltsin não tivesse propiciado a Putin abrir caminho para chegar ao poder. O tirano que se beneficiou enormemente da roubalheira dos oligarcas, tornando-se um deles e mantendo-os hoje em rédea curta, quando não os suicida, foi quem sintetizou numa frase o sentimento nostálgico da maioria dos russos: “O fim da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século passado”. Depois de ocupar a Crimeia, ele agora tenta transformar a nostalgia em realidade, com a invasão da Ucrânia.

Durante a sua vida pós-União Soviética, Gorbatchov tentou conciliar as suas duas imagens, no que deve ter sido um tormento existencial. Apesar de ter propiciado o fim da União Soviética, dobrando-se ao que era inevitável, reclamou da arrogância dos Estados Unidos diante da débâcle do adversário. Tentou criar um museu sobre o terror stalinista, criticou o despotismo de Putin, mas, em 2014, apoiou a ocupação da Crimeia, para a satisfação do tirano. No começo deste ano, já bem doente, alertou para as consequências funestas da invasão da Ucrânia e voltou a alimentar ainda mais o ressentimento de Putin — que, nesta quinta-feira, mandou anunciar que não compareceria ao funeral de Gorbatchov.

Essa dualidade de imagens serviu de tema a um comercial de televisão, em 1997, considerado um dos mais bizarros da história da propaganda — e também um dos momentos mais emblemáticos da biografia de Gorbatchov. Naquele ano, apesar de meses de relutância, ele aceitou participar de um filmete da cadeia americana Pizza Hut, que havia instalado uma das suas lojas na Praça Vermelha, em Moscou. De acordo com a revista Foreign Policy, em reportagem publicada em 2019, os meses de negociação não transcorreram apenas porque Gorbatchov queria um cachê maior, mas porque a sua mulher, Raíssa, e assessores dele receavam que a sua reputação, já ruim na Rússia, também sofresse desgaste internacional. Ao final, estima-se que ele tenha embolsado bem mais do que havia sido pago à atriz Pamela Anderson, que foi o primeiro rosto (e todo o resto) da Pizza Hut. A cifra pode ter chegado a 1 milhão de dólares — ou, em números atualizados, quase 2 milhões de dólares. A opção número dois da cadeia americana era o campeão de boxe Mohamed Ali. Mas não foi a ganância que moveu Gorbatchov a topar fazer o comercial.

Um ano antes de a peça começar a ser produzida (ele pode ser visto logo depois da última linha desta reportagem), Gorbatchov havia conseguido meros 0,5% dos votos para presidente da Rússia. O inimigo Yeltsin foi o vitorioso — que boicotou financeiramente a criação da fundação de Gorbatchov, em andamento. O russo mais admirado pelo Ocidente precisava urgentemente de dinheiro para erigi-la e até mesmo para sobreviver. De acordo com a revista russa Meduza, publicada em inglês, a pensão mensal de 4 mil rublos que lhe foi dada em 1991 equivalia, cinco anos depois, a menos de 2 dólares por mês. A ruína da economia russa, depois do fim da União Soviética, o alcançou. Apareceu-lhe, então, a possibilidade oferecida pela Pizza Hut, que se instalara na Rússia, padecia da crise que afligia o país, mas queria enfatizar a sua presença global — e “Gorby” era um personagem conhecido nos quatro cantos do mundo.

A Foreign Policy conta que a Pizza Hut sugeriu que Gorbatchov aparecesse comendo uma fatia de pizza. Ele se negou. Acertaram, então, que a sua neta o fizesse. Gorbatchov atuou com má vontade. Ao chegar atrasado ao set de filmagem montado na Praça Vermelha, o diretor lhe disse:” Bem, esta é uma grande produção na qual estamos envolvidos”. A resposta de Gorbatchov foi seca: “Já estive em muitas grandes produções neste lugar”.

O comercial mostra Gorbatchov e a sua neta chegando à loja da Pizza Hut na Praça Vermelha, em meio a uma nevasca.  Sentam-se a uma mesa e, enquanto o ex-líder russo serve a menina, dois clientes de outra mesa travam a seguinte conversa:

— É Gorbatchov, diz o primeiro.

— Por causa dele, temos essa confusão econômica, afirma o segundo.

— Por causa dele, temos oportunidade!

— Por causa dele, temos instabilidade política!

— Por causa dele, temos liberdade!

— Caos completo!, grita o crítico.

— Esperança!

Até que uma senhora intervém:

— Por causa dele, nós temos muitas coisas, como Pizza Hut!

O crítico de Gorbatchov então se levanta e puxa um “Viva Gorbatchov!”

Gorbatchov agradece, fazendo um aceno.

Em 1º de janeiro de 1998, o comercial foi ao ar pela primeira vez. No press release que acompanhou o lançamento do filmete, Gorbatchov justificou-se que estava criando um biblioteca sobre a perestroika, a política de liberalização da economia soviética, que ele iniciou em 1985. Mas o constrangimento mundial foi grande. Em 1997, ele explicou ao New York Times a participação no comercial  da seguinte forma: “(A pizza) é uma parte importante da vida. Não se trata apenas de consumo. Trata-se de socializar, de reunir as pessoas”. 

O comercial da Pizza Hut foi o dia em que Gorbatchov terminou em pizza. Meio mozzarella, para o Ocidente; meio cebola, para os russos. É o capitalismo, seu estúpido.

Assista ao comercial do qual ele participou:

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Tenho um amigo Filho de russos.Perguntado sobre a Perestroyka dizia: Ele traiu a Pátria!Nunca entendi esta frase.Talvez por acreditar que o comunismo russo matou milhões de pessoas,a restrição da liberdade individual,a imprensa censurada, a impunidade dos membros da Nomenklatura do PC SOVIÉTICO,a feroz KGB,STASI,etc...Mas a Rússia nunca abandonou ou se colonizou pelo conhecimento estrangeiro.A escola básica e o trajeto até a Universidade,e escolas profissionais provedoras de competências reais

  2. O sonho de uma União Soviética eterna e magnânima derreteu igual ao queijo da pizza do comercial. Alguns ex-camaradas saudosistas dos tempos do império dos gulags, da planificação dos kolkhoses e sovkhoses, vendo que o sonho encolheu, tentam esticá-lo a qualquer custo para ver se o grande Urso, agora hibernando, volta a caber na roupa.

  3. Por causa dele lavou-se a roupa suja na União Soviética que encolheu e ficou do tamanho da Rússia. Alguns ex-camaradas saudosistas sonham em esticá-la para nela caber um grande Urso que já hibernou faz tempo!

  4. Quanto estive na Rússia testemunhei 2 coisas. Primeira: Puttin é Deus; Gorbachev é o Demônio. Mais, na época da Perestroika, Puttin era da linha dura, contra as medidas do Mikail. Tanto que hoje tenta “” unificar “” novamente “” a ex URSS. Anexou a Crimeia. Agora quer a Ucrânia (meninas-dos-olhos de Moscou) e não vai parar aí

  5. Lá se foi 1 dos raros lúcidos da nossa era: MIKHAIL GORBATCHOV, q inscreveu um digno - SIM, UM DÍGNO - capítulo da trajetória da HUMANIDADE. Daí em diante sucedeu-o 1 moleque bêbado e logo após o serial kiler e genocida, 1 idiota doentiamente perverso q martiriza e crucifica ucranianos e russos em massa e assassina também 1 a 1 seus antagonistas e o restante da HUMANIDADE, ao degradar e humilhar para sempre a nossa espécie... o nanoputin, mais 1 rato a chafurdar no lixo da HISTÓRIA UNIVERSAL.

    1. Obrigada pela excelência desse relato histórico, MÁRIO SABINO, realizado com inteligência, brilho, objetividade e fidelidade.

  6. Lá se foi 1 dos raros lúcidos da nossa era: MIKHAIL GORBATCHOV, q inscreveu um digno - SIM, UM DÍGNO - capítulo da trajetória da HUMANIDADE. Daí em diante sucedeu-o 1 moleque bêbado e logo após o serial kiler e genocida, 1 idiota doentiamente perverso q martiriza e crucifica ucranianos e russos em massa e assassina também 1 a 1 seus antagonistas e o restante da HUMANIDADE, ao degradar e humilhar para sempre a nossa espécie... o nanoputin, mais 1 rato a chafurdar no lixo da HISTÓRIA UNIVERSAL.

    1. Obrigada pela excelência desse relato histórico, MÁRIO SABINO, realizado com inteligência, brilho, objetividade e fidelidade.

  7. Eu lembro de ter visto esta propaganda quando criança, é realmente muito ilustrativa. Pelo menos podemos compra pizza / armas / picanha / m4c0nh4. Mas e aquilo que importa? Tanto faz, já não importa.

  8. O ocidente trata Gorbachov quase como se fosse um agente infiltrado. Ele é louvado pela sua incompetência, não por suas qualidades. Como medida do seu caráter, que não diferia muito do dos seus antecessores, basta ver como agiu aquando do desastre de Chernobyl.

  9. Final injusto para tantos feitos! Liberdade para as Repúblicas Socialistas foi uma enorme conquista e causa tristeza e repulsa ver o que Putin está pretendendo fazer com cada uma delas!

  10. O povo russo parece desconhecer a enorme contribuição de Gorbachov para tirar a economia deles do buraco em que estava. Um desenvolvimento surpreendente sem nenhum reconhecimento. Espera-se que obtenha o júbilo celestial junto com a sua Raissa. Amém.

    1. Caro Eugênio, concordo contigo, foi grande homem. Diferente de todos os anteriores, assumindo o governo não mandou matar ninguém. Libertou os outros países que viviam sob o tacão da ditadura da Rússia. Libertou Polônia, Romênia, Hungria , e tantos outros escravizados.. Este mereceu o Nobel da Paz.

  11. Muito bom artigo. Melhor do que li na imprensa estrangeira da qual sou assinante como The Times ( britânico e não o de NY), BBC , Frankfurter Algemeine e Le Figaro.

  12. Gorbachev realizou grandes proezas, porém um só estadista não basta para consertar as mazelas do mundo humano. E os poucos que conseguem tal alcance em suas vidas por vezes não recebem a paga justa pelo realizado ou pelos caminhos que deixou para serem trilhados por outros abnegados.

  13. Margaret Thatcher, Bill Clinton, Barak Obama, etc., ganharam muito com palestras. Diferentemente destes com suposto expertise em alguns assuntos, Gorbatchov teve que ser garoto propaganda para resolver sua aparente penúria. Uma coisa que realmente o desabona aconteceu na tragédia de Chernobyl, ocultando informações aos países vizinhos e aos próprios soviéticos, sobre a gravidade do acidente.

    1. Muito bom. Estou sempre aprendendo com Sabino e Crusoé. Pena que russos não entenderam e ele perdeu a eleição e depois "surgiu" Putin. Que desastre pros Russos e o mundo.

    1. Esse grande estadista Gorbatchov liberou a saída dos judeus da União Soviética em 1991 para que pudessem emigrar para Israel. Eu tive a honra de cumprimentá-lo em sua visita a São Paulo junto com sua esposa Raissa. Que sua alma brilhe no céu !!!

  14. na minha humilde opinião que não importa muito , esse homem salvou o planeta inteiro da destruição completa . É uma pena que sempre aparece genocidas com poder para continuar o papel de criar conflitos , como putin , xi, em menor escala , maduro , assad , ortega , homens que se acham acima da vida e da morte .que passem logo.

    1. Pois é, melhor terminar em pizza do que em pó radioativo.

  15. Em meio ao caos, ele teve a dignidade de fazer o certo e acabar (indiretamente) com a guerra. Merece respeito da humanidade por isso.

  16. Lembro desse comercial. Como tudo na vida, sempre há duas possibilidades de visão de um fato, como se vê no texto dos outros atores. Acho que sua imagem não ficou prejudicada no ocidente, por isso. Espero que ele tenha aproveitado para ter uma vida digna

    1. Concordo. Foi um comercial muito bacana. E a figura dele supera qualquer eventual constrangimento ocidental...

    1. Eu também desconhecia o comercial mas não a importância de Gorby para o mundo. Parabéns Sabino! Espetacular artigo!

Mais notícias
Assine agora
TOPO