ReproduçãoMinha imaginação o nome deste puteiro foi nas alturas com esse nome mitológico, com alta carga simbólica, ancestral

A dama do cavalo alado

O nome de um bordel no centro do Rio de Janeiro, cujo panfleto passou em minhas mãos um dia desses, enseja algumas reflexões
14.06.24

Eu estava caminhando no centro do Rio de Janeiro, na rua ao lado do Theatro Municipal, logo após a estátua de Carlos Gomes, quando recebi um panfletinho, de um sujeito que não cheguei a ver o rosto, onde estava escrito: A Dama do Cavalo Alado.

Nele havia um endereço e dizia que tinha várias moças. Ou seja, era um puteiro.

Minha imaginação foi nas alturas com esse nome mitológico, com alta carga simbólica, ancestral.

Não, eu não fui ao puteiro. O importante aqui é o nome. Cheguei ao Rio de Janeiro para ver a ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, numa montagem de André Heller-Lopes. Foi em novembro do ano passado.

No ônibus entre São Paulo e o Rio de Janeiro aconteceu de uma mulher com mais de 200 quilos sentar logo ao meu lado esquerdo. Evidentemente ela não cabia no assento dela e ocupou metade do meu. Mas não só isso: com o movimento do ônibus minha perna esquerda foi sendo engolida pela banda direita da bunda da moça.

A imagem de fundo do celular era ela com um homem e duas crianças. Pensei: “Ela teve filhos, começou a engordar na gravidez e não parou mais”. Ela mandava áudios mas eu não ouvia pois estava com meu fone. Acontece que o meu fone descarregou e passei a ouvir o que ela mandava. Algum momento ela começou a falar que ia filmar mais conteúdos para o seu Onlyfans. Sim, a moça com mais de 200 quilos cuja banda direita da bunda tinha engolido minha perna esquerda no banco, tinha um Onlyfans.

Passei a pensar em como a profissão mais antiga do mundo — aquela da Traviata, que significa transviada — digitalizou-se. Sendo que uma puta na era anterior à internet podia mais facilmente deixar a prostituição — e seu passado poderia ser esquecido. Mas a “webprostituição” deixa rastros, que podem ficar circulando futuramente na internet. Penso nas senhoras respeitáveis, já com netos, que fizeram filmes eróticos nos anos 1980. O tempo deixa muita coisa para trás, felizmente. Veremos como a internet vai lidar com os arquivos de Onlyfans e similares. Será que vão desaparecer com o tempo? Ou será que os arquivos vão permanecer circulando e atormentando aquelas que os produziram?

Ora, a chave para o amor a essas prostitutas tão importantes na história do drama, como a Traviata, é não a imagem — aquilo que o Onlyfans fornece — mas a imaginação. O segredo do amor de Herculano por Jeni em Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, é que ela resolveu transar com todos menos com ele. Ele se apaixona perdidamente e quer transformá-la numa mulher pura, isolando-a do mundo — o que se torna a sua desgraça. O segredo do amor de Swann por Odette no Em Busca do Tempo Perdido é também a imaginação: ela (uma cortesã vulgar) o despreza, o faz esperar noites a fio, ter ciúmes, fazer tudo por ela. E ele (um aristocrata, com um gosto refinado para artes) termina por desejá-la profundamente, e casar-se com ela.

Também no filme Les Dames du Bois de Boulogne é a imaginação causada pela ausência que provoca o desejo. Desprezada pelo amante, a personagem principal, Helène (interpretada por Maria Casares, que veio a casar-se com Albert Camus) prepara um plano de vingança: o apresenta a uma moça jovem que na verdade é prostituta. Ele fica obcecado pela jovem, e interpreta sua inacessibilidade como pudor. Eles terminam por casar-se e na noite do casamento revela seu passado: ela era prostituta.

A recém-casada, ao ser descoberta, desfalece e diz: “Tantas mulheres eram honestas e se perderam, será que não poderia acontecer o contrário?”. É um lindo final, digno de uma ópera. E como fica a imaginação na era digital, em que a imagem pode ser tão facilmente acessível? Uma coisa é certa: a webputa perdeu muito em relação à prostituição tradicional ao inspirar o desejo profundo. Não é à toa que essas “produções de conteúdo adulto”, como é chamado, está cada vez mais parecido com mendigagem online: elas têm usado de estratagemas como bots, fazendo rifas, comentando publicações alheias, mendigando atenção — uma coisa que tem se tornado difícil de conseguir com o número crescente de jovens que produzem. A produtora desse tipo de conteúdo mais famosa atualmente ficou famosa não pelo conteúdo em si mas pelos vídeos interagindo com pessoas na rua, a Martina Oliveira.

Pensei nisso tudo durante a ópera no Municipal — a excepcional montagem de André Heller-Lopes, que vi com a perna esquerda dormente — e também em como a criação da ópera no século 16 foi uma tentativa (muito bem-sucedida) de recriar a atmosfera mítico-religiosa do teatro grego. Ou seja, uma atmosfera milenar, antiquíssima.

Nelson Rodrigues dizia que a mulher não trai por amor ou desamor, ela trai pelo apelo milenar da prostituta. Foi isso que o nome naquele planfleto inspirou.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. A normalização da nudez e a banalização do sexo tiraram peso à prostituição. Disso se valerá a consciência da "webputa" enquanto conta o dinheiro que fatura humilhando-se virtualmente, mas evitando ser tocada pelos tristes punheteiros de plantão. Poderá mudar caso tenha a realidade de seu passado passar aos olhos de um futuro filho...

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