Flickr/Rafael Holanda BarrosoCelebração do Dia da Independência, em Brasília: brasileiros vieram depois

Separação ou Independência?

Quando D. Pedro declarou a Independência, em 1822, o "Brazil" já não era mais colônia há sete anos, e ainda faltava criar os “brasileiros”
09.12.22

No dia 16 de dezembro de 1815, foi legalmente criado o Reino do Brazil, que acabava com o regime colonial. Sim, ao contrário do que se costuma pensar, a colônia deixou de existir sete anos antes da data convencional. Além disso, nessa época ainda não se podia falar que os seus habitantes se viam como brasileiros. A ideia, portanto, de que no dia 7 de setembro de 1822, os “brasileiros” conseguiram romper os grilhões que os prendiam aos portugueses e acabaram com a colônia é duplamente errada, e mostra os desafios que ainda temos para compreender corretamente o nosso passado.

O “Brazil”, ou melhor, o Reino do Brazil, foi estabelecido por D. João, que se encontrava com sua Corte no Rio de Janeiro desde 1808, após a retirada de Lisboa em razão da invasão napoleônica (se foi fuga ou retirada, veremos em outro artigo). Muito se discute sobre as motivações da decisão do rei de elevar a colônia a Reino. Alguns relatos apontam para uma inspiração do então chanceler da Áustria, Príncipe de Metternich, nas negociações no Congresso de Viena (1815), que puseram fim às guerras napoleônicas. Outros atribuem a ideia a diplomatas portugueses, para proteger a integridade da monarquia.

Independentemente da origem, não se tratava de mera medida burocrática: a Carta Lei de 16 de dezembro de 1815 criava o Reino Unido de Portugal, Brazil e Algarves. Por esse meio, unificava-se de fato e de direito um território que se transformou de uma abstração anterior (o conjunto das colônias, e não um Brasil já existente) em entidade jurídica concreta. O Reino do Brasil e o de Portugal eram distintos e se uniam, em igualdade, à Coroa, esta a entidade que encarnava a soberania, exclusiva do Rei.

A medida reforçava, especialmente, a decisão de Dom João VI de permanecer no Rio de Janeiro. Agora, o rei (naquela época ainda regente) não governaria a partir de uma colônia, nem transmitiria ordens a Lisboa a partir uma colônia. O Rio de Janeiro se tornava metrópole, aproveitando-se dos desenvolvimentos que vinham ocorrendo desde 1808. Era uma nova e importante realidade, que ampliava gradualmente as raízes da Coroa na região, provendo desenvolvimento econômico e acesso ao poder à sociedade local, que dificilmente aceitaria perdê-los por uma volta à realidade anterior (esse seria o núcleo inicial de apoio a D. Pedro, em 1822.

A nova realidade alimentava também insatisfações: no norte do novo Reino, os benefícios da nova conjuntura eram menores e havia o aumento de impostos para financiar a Corte (a região que hoje chamamos Nordeste era a principal área econômica após o fim do ciclo do ouro). Na porção europeia de Portugal, a situação era ainda pior, assolada pela crise econômica e pela perda de influência. Todos esses elementos caminhariam para a Revolução do Porto e para o complexo e incerto processo que resultou na Independência do Brasil. Essa, portanto, não resultou no fim da colônia, mas na ruptura entre os dois Reinos, a separação da soberania do Rei D. João VI e a criação do Império.

Todo esse movimento político se tornava ainda mais complicado pelo fato de que, apesar de, a partir de 1815, o “Brazil” passar a existir, ainda não havia efetivamente “brasileiros”, ou seja, uma mesma identidade nacional. Espalhados por um vasto território, vivendo de contatos difíceis entre si e, em alguns casos, de rotas rápidas e seguras com a Europa (era muito mais rápido ir de São Luís do Maranhão a Lisboa do que a Salvador), as capitanias da colônia portuguesa viviam realidades particulares, que contrapunham alguns poucos elementos comuns com peculiaridades, dinâmicas e histórias locais próprias. Por décadas os ingleses falavam em “Brasis” para descrever as colônias, em vez de um “Brasil” colonial.

Era forte a identificação local, o ser pernambucano, paulista etc. Essa era a realidade mais direta daquelas sociedades, que não se viam como “brasileiras”. Na verdade, o elemento unificador, que dava a parte de homogeneidade identitária nas colônias era o ser português, súditos do Rei. Havia uma certa tensão entre essas duas realidades, dados os interesses conflitantes entre as capitanias, que buscavam autonomia e menos impostos, e o poder central, que buscava controlar seu território. Dessa tensão surgiam conflitos ou rebeliões, que marcaram o período colonial.

Em alguns casos, aparecia também uma outra identidade, aquela que separava Europa e América. Havia de fato preconceitos no lado europeu contra os luso-americanos. E encontramos em alguns documentos referências a “brasileiros”, “brasílicos”, “brasilienses”. O problema é que essas expressões significavam coisas diferentes, muitas vezes apenas aqueles que viviam nas colônias, independentemente de onde tivessem nascido. E não era uma noção compartilhada por todos. Muitos nascidos na colônia, depois de criado o Reino, identificavam-se como portugueses.

O Reino do Brazil, criado em 1815, em grande medida começa um processo que levou a uma maior definição dessas identidades, criando um “Brazil”, uma referência que não era mais colonial. Do embate entre Lisboa e Rio de Janeiro, em 1821-1823, veio a criação do Império do Brasil, liderado por D. Pedro, que pretendia que o novo Estado incorporasse todo o território do anterior Reino. Alcançar essa meta, envolvia também enfrentar as diferentes identidades e lealdades, sendo que em muitas regiões o apoio a Lisboa permanecia, por interesse ou mesmo lealdade e identidade.

A Independência brasileira ocorreu no conflito político geral que se vivia no momento e a incorporação de todas a províncias do Reino do Brasil no Império demandou uma série de operações militares, uma verdadeira Guerra de Independência. Nesse processo, a identidade de ser “brasileiro”, distinto de ser “português”, começou a ser forjada, mas ainda demandaria muitas décadas e esforços para estar consolidada como a conhecemos e sentimos hoje. Entre equívocos, dívidas históricas (especialmente pelo problema da escravidão) e oportunidades perdidas, não se pode perder de vista que a construção do Brasil não foi fácil.

 

Hélio Franchini Neto é diplomata, historiador e autor do livro Redescobrindo a Independência: uma história de batalhas e conflitos muito além do Sete de Setembro (Benvirá)

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  1. Interessantíssimo. A formulação de uma identidade nacional ainda é uma carência atual, não por não nos sentirmos brasileiros, mas por nós faltar o orgulho de o ser.

  2. Pesquisador político há anos prevejo que caso a QUADRILHA insista na anarcocomunização do chiqueiro logo poderemos ter quatro ou cinco repúblicas uma das quais a Pátria do Sul (PR, SC e RS que pode incluir RJ e SP) já está criada com estatuto e tudo ... uma no Sudeste/Centro Oeste, uma no Nordeste (o lixo) e outra na Amazônia esta com apoio do mundo inteiro ... no meu entender tudo isto mera questão de data.

  3. De que adianta a Independência, se escolhemos ser súditos de incompetentes e populistas? Eu preferia que o D.Pedro II estivesse liderando nosso desenvolvimento! Aliás, nem teríamos chegado nesse atraso e pobreza atuais!

  4. Em 1958 acompanhei, aos 13 anos, a Copa da Suécia, com um rádio de pilha, Spica, com a revelação de Rei Pelé, que por sua Arte e Valores poderia simbolizar uma nação que imaginávamos existir ou ser ainda possível no futuro. Ledo engano! Tal nação nunca existiu além de nossos sonhos e está cada vez mais distante de existir no futuro, rumo à insolvência econômica e falência moral! O último a sair apague a luz do aeroporto!

    1. eu tinha 15 anos e não estou tão pessimista apenas porque sou muito teimoso! Motivos não faltam mesmo porque lá em "FantasyLand" não tem espaço para gente brilhante como o autor acima!

  5. a história como aprendi na escola era chata resumida é distorcida, explicar todas as nuances aumenta o interesse e compreensão.

    1. interessante o artigo identificando fatos que nos livros de história são resumidos. Porém a construção continua e difícil.

  6. Salvo engano de minha parte, a personagem histórica austríaca citada no segundo parágrafo do artigo teria sido von Metternich e não Talleyrand (que era francês).

    1. Vc está certo, Éder! Metternich foi o representante austríaco, o representante francês, Talleyrand. Com a elevação da colônia a Reino Unido, os portugueses ganharam mais um voto no Congresso de Viena. A idéia teria vindo do representante francês. Confusão do sr Franchini.

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