Ricardo Stuckert/Lula via FlickrLula no Complexo do Alemão: eleitorado maior e diferente daquele que vota no PT

Lulismo e petismo, uma relação complicada

Se vencer as eleições, Lula terá de fazer muitas concessões políticas para governar e frustrará os companheiros. Vai dar certo?
14.10.22

No primeiro turno das eleições deste ano, Lula recebeu 25 milhões de votos a mais do que seu companheiro petista, Fernando Haddad, na corrida presidencial de 2018. Lula foi escolhido por 56 milhões de eleitores em 2 de outubro, enquanto Haddad passou ao segundo turno, quatro anos atrás, com 31 milhões de votos. Mais que uma medida da estatura dos dois personagens, essa é uma medida da diferença que existe entre Lula e o PT.

Embora o candidato e seu partido estejam intrinsecamente ligados (ao contrário do que acontece, por exemplo, com Bolsonaro e o PL, que hoje o hospeda), já faz vinte anos que lulismo e petismo não são fenômenos coincidentes. As consequências disso vão além das eleições. Um eventual governo Lula pode ter faces bem diversas a depender do espaço destinado ao PT.

Ao conquistar seu primeiro mandato, em 2002, Lula montou um governo com 35 ministérios e entregou nada menos que 21 deles a representantes das diversas “tendências” internas de seu partido. Isso lhe trouxe problemas. Sem abrir espaços na máquina pública, Lula teve dificuldades para organizar sua base no Congresso. Acabou recorrendo a um método criminoso de compra de apoio político – o mensalão. Caso vença as eleições, Lula deve se deparar com uma equação ainda mais complexa em 2023.

Lula é o candidato de uma coalizão eleitoral que conta com sete legendas: PT, PCdoB, PV, PSB, Solidariedade, PSOL e Rede. Posicionando-se como líder de uma “frente ampla em defesa da democracia”, ele também colheu apoios das mais diversas colorações ao longo do caminho: tucanos históricos, economistas liberais, velhos aliados como o PDT (com um contrariado Ciro Gomes), caciques do MDB, ex-adversários como Simone Tebet e André Janones. Embora nem todos esperem posições em um futuro governo – Ciro Gomes, por exemplo, jura que descartaria um convite, mesmo que ele viesse – continua sendo muita gente para ouvir e muitos interesses para contemplar.

E o pior nem foi mencionado ainda: o Congresso eleito está coalhado de bolsonaristas e representantes de um centrão que abraçou as pautas conservadoras sem medo de ser feliz. Só na Câmara, esse bloco de direita conta com 257 deputados, contra 128 da esquerda capitaneada por Lula. Se nada mudou nas leis do universo, será possível atrair muitos representantes do centrão para as fileiras governistas – mas não de graça. Se não quiser recorrer novamente a métodos “heterodoxos” de cooptação, Lula terá de abrir espaços na administração. O que congestiona ainda mais o ambiente.

Eis o busílis. Ainda que Lula, por hipótese, esteja disposto a espelhar em seu governo a tal frente ampla eleitoral, ainda que aceite deixar de lado pautas da esquerda para se posicionar ao centro, o petismo vai se conformar com isso?

O cientista político André Singer, que foi porta-voz de Lula em seu primeiro mandato e tem ligação histórica com o PT, foi responsável por identificar as feições principais do lulismo. “A política lulista é a de encontrar a cada conjuntura o ponto de equilíbrio entre os fatores”, escreveu Singer anos atrás. Quais fatores? De um lado, as necessidades da população mais pobre, de outro, as pressões de empresários e investidores, que demandam, antes de mais nada, controle dos gastos públicos. Ao buscar esse equilíbrio, Lula praticou, segundo Singer, um “reformismo fraco” nos seus dois mandatos, que pouco tinha a ver com o programa histórico do PT, bem mais radical. Petistas frustrados chegaram a qualificar o governo lulistas de “neoliberal”, xingamento máximo da esquerda nos anos 2000.

Agência BrasilAgência BrasilJosé Dirceu e Lula: depois do mensalão, relação assimétrica entre Lula e o PT
Com suas políticas sociais, especialmente o Bolsa Família, Lula cativou um eleitorado muito diferente daquele que até então havia votado no PT. O partido atraía gente de classe média, alta escolaridade, que habitava as capitais e regiões metropolitanas do Sul e do Sudeste. O eleitor especificamente lulista é o contrário: tem baixa renda, baixa escolaridade e mora no Norte e no Nordeste, bem como nas periferias das grandes cidades. Esse grupo de gente mais pobre, de existência mais precária, é numerosíssimo no Brasil. Isso ajuda a explicar aquela distância entre Lula e Haddad (e também os 6 milhões de votos que Lula teve de dianteira em relação a Bolsonaro).

O PT é o único partido brasileiro com quem um grande número de pessoas se identifica. É também o partido que um grande número de pessoas odeia. A última edição de Crusoé comentou as pesquisas dos cientistas políticos Cesar Zucco, David Samuels e Fernando Mello, que mediram os universos do petismo e do antipetismo nos dias de hoje: 24% e 29% dos eleitores, respectivamente. Mas essas porcentagens variaram historicamente.

“Entre 2000 e 2012, cerca de 30% dos brasileiros diziam se identificar com o PT”, diz o cientista social Leonardo Avritzer. “No período de crise entre 2012 e 2018, esse valor despencou até 9%. A maré virou mais uma vez e hoje 24% se identificam com o PT. Mas a simpatia em relação a Lula é dez pontos percentuais maior que isso.”

As diferenças entre petistas e lulistas não se restringem ao perfil demográfico. As opiniões sobre temas polêmicos também podem divergir bastante. Em novembro de 2017, quando Lula era processado pela Lava Jato e havia dúvida sobre se ele ou Haddad disputariam as eleições do ano seguinte (Lula acabou sendo preso em abril de 2018), o Datafolha fez uma pesquisa sobre assuntos como aborto, posse de armas e uso de drogas. Em alguns cenários, Lula era o candidato. Em outros, Haddad.

Diante da pergunta “Independentemente da situação, a mulher que interrompe uma gravidez deveria ou não ser processada e ir para cadeia?”, 66% dos eleitores que declararam voto em Lula disseram que sim, contra 38% dos que votariam em Haddad.

Para a questão “Você é a favor ou contra que o aborto seja permitido em casos de estupro? E em casos em que há risco de vida para a mãe?”, os percentuais foram respectivamente de 48% e 70% a favor da permissão. Quando o tema foi pena de morte, 56% dos eleitores de Lula foram favoráveis à sua adoção, contra 40% dos eleitores de Haddad. E assim por diante. Sistematicamente, o lulista se mostrou mais conservador do que o petista puro sangue.

Agência PTAgência PTLula e o movimento LGBTQIA+: ele não irá tão longe quanto eles gostariam
Assim como existe gente no PT que gostaria de implementar políticas radicais na economia, também há um grupo numeroso que sonha com uma revolução de costumes. São os ativistas de causas identitárias que povoam as fantasias e os pesadelos do bolsonarismo.

No começo do ano, o PT mergulhou numa polêmica quando um de seus dirigentes, Alberto Catalice, postou nas redes sociais que “o identitarismo é um erro”. A militância ligada a movimentos negros, feministas ou LGBTQIA+ ficou chocada. Outros dirigentes, como o deputado federal Rui Falcão, que hoje coordena a comunicação da campanha de Lula, se levantaram para rebater os argumentos de Cantalice, dizendo que a defesa das minorias é tão importante quanto pautas tradicionais da esquerda, como a redistribuição de renda.

Quando a campanha eleitoral chegou, no entanto, as divergências internas do PT foram abafadas. As diretrizes do plano de governo de Lula são vagas tanto sobre economia quanto sobre a chamada pauta de costumes. Detalhamento que é bom, até hoje não aconteceu. Essa indefinição não deixa apenas os eleitores em suspenso: a militância petista também fica assim.

André Singer usou a metáfora de “dois corações batendo em ritmos desencontrados” para falar de lulismo e petismo. Um é mais pragmático, o outro mais ideológico. Um se sente bastante confortável no poder, o outro sonha com a revolução. Essa tensão deve aflorar caso Lula chegue ao governo.

O cientista social Celso Rocha de Barros está lançando nesta sexta-feira, 14, o livro PT, uma história (Companhia das Letras). São mais de quinhentas páginas sobre a trajetória do partido. Ele enxerga no julgamento do mensalão um dos momentos-chave na relação entre Lula e o PT. “Naquele momento, estrelas de primeira grandeza do partido caíram, como José Genoíno e José Dirceu. Genoíno tinha uma história própria, que o qualificava para enfrentar Lula em muitos debates internos. Dirceu havia dado unidade a um partido que era bastante fragmentado”, diz Barros. “Depois do mensalão, sobrou Lula, com popularidade muito maior que a do PT. A relação entre ele e o partido ficou assimétrica.”

Barros acredita que, se Lula for eleito, fará o que for necessário para conquistar a governabilidade. “Não vai ser o governo que a esquerda gostaria. Aqueles petistas que sonham com uma revanche, depois de serem massacrados nos anos da Lava Jato, provavelmente vão se decepcionar. Não descarto que haja racha, desfiliações e até busca por um outro candidato, que represente melhor os anseios dessas pessoas”, diz ele.

O diagnóstico é parecido com o de outro acadêmico ligado ao PT, que pediu que seu nome não fosse publicado. Segundo ele, o petismo que não se sentir contemplado na divisão de espaços de um governo Lula, provavelmente vai recorrer às bases sociais do partido para fazer pressão. A temperatura poderia subir no campo, com o MST; no movimento sindical; nos grupos identitários.

Barros também enxerga um cenário em que Lula e as bases petistas imediatamente cerrariam fileiras: caso surja uma ameaça de impeachment. Nesse caso, o próprio Lula poderia invocar os movimentos sociais em sua defesa (algo parecido aconteceu quando ele usou como ameaça a mobilização do “exército do Stédile”, o líder do MST, em resposta ao impeachment de Dilma).

Lula tem repetido que deseja fazer um governo de união. Se isso for verdade, e não apenas lero-lero de campanha, ele terá de realizar operações delicadas caso vença. Terá de abrir espaço para conservadores sem melindrar o PT, e abrir espaço para o PT sem desencadear uma guerra com um Congresso em que a direita terá grande força. Lulismo e petismo estão atados um ao outro, é claro, mas não são a mesma coisa. O partido é fundamental para Lula, mas também pode ser uma fonte de tensão se ele chegar ao governo. Vai dar certo?

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