ReproduçãoVítima de bombardeios russos na Ucrânia é socorrida por bombeiro

O direito de existir

O regime russo de Vladimir Putin apresenta características cada vez mais abertamente fascistas e desconsidera a humanidade dos ucranianos
14.10.22

A entrada do Exército russo na Ucrânia, em uma invasão que tinha como propósito a conquista de todo o território desse país, não foi apenas uma questão geopolítica, mas envolveu um padrão de comportamento baseado na ideia de uma Grande Rússia, com valores completamente distintos dos  ocidentais. Nesse universo ideológico, não existiria lugar para uma entidade nacional como a Ucrânia, pois careceria de identidade própria, sendo somente uma extensão eslava da própria Rússia. Se o país vizinho resistisse, o que não estava nos planos de Vladimir Putin e de seu grupo, deveria ser simplesmente extinto. O nacionalismo russo não poderia suportar outro nacionalismo eslavo em suas fronteiras, pior ainda compartilhando valores ocidentais, como direitos humanos e liberdade individual em todos os seus níveis. Se isso porventura acontecesse, seria apenas o resultado de uma qualquer maquinação ocidental, em particular americana, tendo como objetivo criar as condições de dominação da mesma Rússia. O inimigo adota aqui a forma do Ocidente e das democracias capitalistas, identificadas a formas do mal, segundo os ideólogos Ivan Ilyin e Alexander Dugin.

Em junho de 2003, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, fez uma visita oficial a Londres, e foi recebido com todas as honras pela rainha Elisabeth II. Havia nessa época uma estreita colaboração com o primeiro-ministro britânico Tony Blair. Em um discurso para um público constituído de intelectuais escoceses, Putin proferiu as seguintes palavras: “a Rússia é parte da Europa, disso não há dúvida”. Foi ovacionado. Naquele momento, o russo apostava em uma harmoniosa colaboração diplomática e, principalmente, financeira e econômica. Contudo, na medida em que sua política internacional fracassava ou não correspondia às suas expectativas de poder em áreas que considerava de sua influência, como Chechênia, Geórgia e Ucrânia, Putin não assumia a responsabilidade de seus erros, mas os atribuía a inimigos que estariam confabulando contra ele, no caso, o Ocidente, sempre por trás de seus infortúnios e derrotas, em particular os Estados Unidos. Se seu apadrinhado perdeu as eleições na Ucrânia, isso se devia a tramoias ocidentais e não a um desejo genuíno dos ucranianos de assumirem o seu próprio destino. Ele fortalecia seus instintos persecutórios, abrindo cada vez mais espaço para o acolhimento de ideias eurasianas, baseadas na divisão do mundo entre amigos e inimigos.

Em abril de 2008, teve lugar uma reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em Bucareste, na Romênia, onde se discutiu a questão do ingresso ou não da Ucrânia naquela organização militar e geopolítica. As disputas eram acaloradas, sobretudo entre o presidente americano George W. Bush e a chanceler alemã Angela Merkel. Ele era um firme defensor do ingresso, enquanto ela era uma fervorosa opositora. No final, eles encontraram uma solução intermediária, postergando sine die tal decisão. De fato, Geórgia e Ucrânia não entrariam na Otan conforme advogava o presidente americano, nem tal opção seria descartada, sem que, porém, nenhuma agenda fosse estabelecida. Países da Europa Oriental ficaram indignados, assim como Putin, uma vez que o futuro ficaria indefinido. “A Ucrânia não é nem sequer um país”, exclamou o russo. “Se a Ucrânia entrar para a Otan, será sem a Crimeia e as regiões do Leste. Ela vai simplesmente desmoronar.” A Ucrânia não entrou na aliança militar e seu território foi de qualquer maneira invadido, como se não tivesse direito à existência própria.

Em seu discurso anual à Assembleia Federal, em dezembro de 2012, em seu terceiro mandato, Putin lançou a ideia do que doravante iria orientar a sua postura política e geopolítica: “Chateia-me falar sobre isso, mas sinto que é meu dever. A sociedade russa atual carece de um fecho espiritual”, que lhe será dado pelos valores da Igreja Ortodoxa, mediante seu antiocidentalismo, seu messianismo, sua aversão a outra formas de cristianismo, sua postura intolerante em relação à diversidade dos costumes e culturas, seu nacionalismo, assim como sua adoção de uma ideologia eurasiana. No início desse seu novo mandato, ele disse em uma ocasião, ao então vice-presidente Joe Biden: “Não fomente ilusões…Nós não somos como vocês. Só parecemos como vocês. Mas somos muito diferentes. Os russos e os americanos só se parecem fisicamente, mas nossos valores são muito diferentes”. Afastava-se, assim, de suas próprias posições de dez anos antes, e apontava para os valores do que viria a considerar como sendo o humano e a humanidade. Fronteiras ideológicas foram ultrapassadas.

Diante da invasão russa, os ucranianos se defrontam com sua própria história e essa não é a de uma fraternidade eslava conforme apregoado por Putin e os seus ideólogos. A realidade é aterradora e não se deixa velar por propósitos políticos. Holodomor, ou seja, o genocídio pela fome, empreendido pela liderança soviética, sob a batuta de Stalin, nos anos 1932-3, seus efeitos estendendo-se até a década de 40, culminou no extermínio de 4 milhões de ucranianos, que morreram esquálidos em seus campos e cidades. As mortes também foram o resultado da comunistização completa do país, seguida da destruição da ideia de nacionalidade ucraniana. A unidade soviética foi aplicada a ferro e fogo, com requintes de crueldade, tendo como acompanhamento a eliminação da classe política e intelectual ucraniana. Intelectualmente, nas décadas posteriores, a sovietização da Ucrânia veio a significar a sua russificação, com o sufocamento da língua ucraniana e a abolição do ensino da história deste país.

Em 1991, uma nova era começou com a declaração ucraniana de independência. Imagine-se hoje, graças à invasão russa, com bombardeios de populações civis, prédios residenciais, escolas, maternidades e hospitais, além de estupros de mulheres e jovens de ambos os sexos, a evocação histórica que ela provoca. É o pesadelo da volta de um filme de terror, com a característica de que ele é bem real. Em Putin, os ucranianos se veem em sua própria história, no que ela tem de mais sombrio. O Holodomor é para os ucranianos o que Auschwitz é para os judeus.

A dominação totalitária veio acompanhada da perversão da linguagem. Para os soviéticos, os “kulaks” eram uma denominação do inimigo a ser destruído, vindo a abarcar em seu significado todo descontente, todo opositor. Na origem, a palavra apontava o proprietário de um minifúndio. Eram os pequenos proprietários e agricultores familiares, contrários à coletivização da terra. Logo, “quando a deskulakização começou mais a sério, a linguagem perversa passou a ter consequências práticas: uma vez que era classificado como kulak, o camponês tornava-se, automaticamente, um traidor, um inimigo e um não cidadão”, escreve Anne Applebaum, em seu livro A fome vermelha. A pessoa perdia, assim, o título de propriedade e era expropriada, perdendo terra, casa e local de trabalho, assim como o gado e as colheitas. Estava condenada à fome, sendo a morte a sua consequência. Entrementes, tornava-se um não humano.

A mesma desconsideração pela humanidade encontramos atualmente na forma russa de condução da guerra, não preservando civis e deixando-os à mercê de soldados e mercenários que, com eles, tudo podem fazer. Valas de cadáveres, com homens, mulheres e crianças, vêm a fazer parte desse cenário macabro. O rastro deixado pelos russos é semelhante ao legado pelos Einsatzgruppen, os comandos especiais da SS nazista, nessas mesmas terras de sangue, para utilizar a expressão de Timothy Snyder. A linguagem perversa consiste, agora, em chamar os ucranianos de fascistas e encobrir a invasão com a retórica eurasiana da irmandade eslava e ortodoxa. Todavia, os ucranianos não caíram nesse ardil. O regime russo, apresentando características cada vez mais abertamente fascistas, atribui ao outro o que ele é.

Note-se ainda, a respeito dessas formas de violência, com o terror comunista espraiando-se por todos os lados, até pelos poros das famílias, dos corpos e das almas, que elas são posteriormente apresentadas por pensadores como Alexander Dugin como expressões de comunitarismo, de integração do indivíduo ao coletivo, contrastando com o Ocidente, baseado na propriedade privada, nas liberdades em geral. Dugin, ao insistir em seu antiocidentalismo, termina por justificar formas extremas de liberticídio, por serem de inspiração comunitarista, fundada no primado do coletivo sobre o individual. Portanto, não surpreende o seu resgate de Stalin, igualmente recuperado por Putin.

Todos esses ingredientes tornam a resistência ucraniana um esforço heroico. Em Kiev e outras dezenas de cidades sob o alvo de mísseis russos, eles lutam contra uma violência militar que se apoia em pressupostos ideológicos, antiocidentais, que acusam uma decadência moral do “oeste”, defendem uma irmandade eslava, são contra a Otan e procuram inviabilizar a independência ucraniana e seu sentimento nacional. Não estariam os ucranianos vivenciando uma repetição histórica?

 

Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia e autor do livro Jerusalém, Atenas e Auschwitz: Pensar a existência do mal (Topbooks)

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500
  1. excelente texto. Eu convivi com uma historiadora russa e este texto traz muito do que ela comentava sobre a verdadeira face repressora da união soviética. parabéns

  2. E o brasileiro está prestes a eleger um presidente que é apoiador do carniceiro Putin, tanto Lula, quanto Bolsonaro. Esses candidatos não gostam de ler, portanto não sabem com o que estão se metendo, apoiando Putin. Eles não sabem nada de história geral, são analfabetos funcionais. De alguma forma, Deus nos livre deles!

  3. E o que Bolsonaro pensa a respeito do território brasileiro ser, hipoteticamente, invadido por tropas paraguaias, bem como Lula sobre uma invasão ao nosso território por tropas argentinas ou venezuelanas.

    1. Isso não é casual. Putin tem uma maioria que o apoia.

  4. Dio Santo 🙏 Que destino horroroso dos ucranianos!!! Os governantes russos odeiam a liberdade do povo 😪🖤😪

  5. Excelente análise! Putin é a encarnação de um Stalin, um Hitler, um Fidel - todos tiranos, todos psicopatas, todos assassinos!

  6. Excelente matéria! Nós, brasileiros(as) de boa fé deveríamos encontrar um meio de sobrepor a ridícula posição de nosso governo, deixando clara nossa total condenação a esse psicopata russo ...

  7. A década de 90, que vivi e acompanhei, parecia tão promissora, com a queda do Muro de Berlim, desmoronamento da URSS, evolução da ciência, Plano Real no Brasil (que só quem viveu a hiperinflação dos anos 80 sabe o que significou)… até atacarem as Torres Gêmeas nos EUA. Quanta ilusão e ingenuidade nossa.

  8. O psicopata Putin seguindo as ideias de Ivan Ilyn e Alexander Dugin quer causar os mm efeitos da Holodomor : matar, matar e matar todos os ucranianos e roubando seu território. O pior é ter Lula e Bolsonaro beijando a mão desse genocida ! Aja ignorância!!

  9. Esse psicopata do Putin seguindo as ideias Ivan Ilyn e Alexander Dugin quer ressuscitar os efeitos da Holodomor : matar , matar matar todos os ucranianos e pegando p si seu território. O pior é ter os 2 candidatos à presidência que beija a mão desse genocida

  10. Me enojou ver Bolsonaro e seus asseclas relativizarem a guerra do Putin. Na minha análise psicológica de leigo, Putin e Bolsonaro sofrem da mesma síndrome, a síndrome do pau pequeno. Eles se vendem com viris, mas entram em parafuso, por subjetivamente lutarem contra essa inferioridade como homem, cujo único atributo, já que são estúpidos e brutos, acaba sendo a imagem e o poder. Por isso sempre busco votar em mulheres. Líderes com a síndrome do pau pequeno são perigosos.

    1. Dilma Rousseff, Margaret Thatcher, agora a conservadora da Itália…

  11. O que deve acontecer é que os aligarcas russos, que antes apoiavam Putin, agora estão sentindo a dilapidação dos seus, antes inesgotáveis bens, e como o bolso é a parte mais sensível do corpo, livrar-se do Putin é a saída mais rápida e segura...afinal é preferível entregar os anéis, para não perder os dedos.

  12. Muito esclarecedor seu artigo! Excelente! Traz para nós fatos históricos que ajudam a entender toda a "mecânica" do pensamento do putin genocida.

  13. Esse artigo me deixou c um nó na garganta. Qta tristeza, qto sofrimento! Fiquei desejosa por uma continuação q tente delinear um fim possível p/ essa história! Ninguém tem bola de cristal (não q funcione...), mas essa guerra pode ter um fim q não seja extremamente triste ou desolador? Algumas coisas, por + lindas ou bem escritas q sejam, qdo terminam nos colocam num lugar q parece ter só uma névoa de algum sentimento; esse artigo me deixou num lugar c cheiro de sofrimento, "preferia" esperança😢

    1. USA e OTAN já deram um ultimato na quarta-feira: se o Carniceiro cair na besteira de lançar Armas Nucleares contra os Ucranianos, os Americanos + OTAN já disseram que vão ANIQUILAR todo o Exército Russo e suas Forças Armadas. ... E avisaram que não é Blefe. ... Putin tem de acabar com suas bravatas. ... A CIVILIZAÇÃO agradece. Slava, Ukraine!!

  14. Panorama amplo e bem completo da história recente do valente povo ucraniano em sua saga pra se defender do domínio russo. Ninguém merece

    1. Nem os russos mereciam, o pior é que "nossos" dois pretendentes são pró-Putin...

  15. Excelente artigo, de brilhante clareza. Nós que moramos na Europa, sabemos bem quem é Putin e o que ele pensa. É bom os eleitores brasileiros saberem que o Bolsonaro e o Lula são ambos admiradores e amigos do ogre-anão russo. O Lula ainda disse que essa guerra é culpa da Ucrânia. Ôi !?

    1. Esse Lula é exatamente isso um ignorante! Nunca leu um livro! Seria bom q ele começasse lendo esse brilhante e esclarecedor artigo

  16. Espero que o Professor Rosenfield passe a fazer parte da equipe de Crusoé para nos brindar com suas sempre brilhantes análises.

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