Divulgação"O bolsonarismo substituiu uma aliança liberal-conservadora por uma seita personalista"

‘Faltou sotaque brasileiro para a terceira via’

O humorista e apresentador André Marinho diz que políticos que buscaram quebrar a polarização não conseguiram divertir os eleitores, por adotarem um discurso chato e cheio de tecnicalidades
23.09.22

Esparramado no sofá de sua casa, André Marinho assistiu ao discurso da vitória de Lula na avenida Paulista, em 2002. Em seguida, animado, correu para o quarto dos seus pais e imitou a voz gutural do petista. “Fiquei boquiaberto por dentro com a atenção deles”, conta o humorista e apresentador em seu livro recém-lançado O Brasil (não) é uma piada (Intrínseca). O dom, revelado de forma espontânea na infância, décadas mais tarde seria um dos maiores trunfos do artista, que hoje imita diversas outras personalidades com fidelidade, de Donald Trump a Geraldo Alckmin. Metódico, ele guarda em um arquivo “na nuvem” observações sobre como encarnar cada um dos seus personagens.

À verve humorística, Marinho alia uma afinada compreensão dos fenômenos políticos. Formado em direito, ele estudou ciência política na Universidade de Nova York. Mais relevante do que sua passagem pela academia, ele teve o privilégio de acompanhar os bastidores da campanha à presidência de Jair Bolsonaro, em 2018. Filho do empresário Paulo Marinho, ex-aliado do presidente, precisou dividir a casa em que vivia com cerca de quarenta funcionários da equipe de Bolsonaro, que trabalharam no que era a academia de musculação. Depois de passar pelo programa Pânico, Marinho, aos 28 anos, comanda um canal de entrevistas no Youtube. Ele conversou com Crusoé pelo telefone.

 

Com base na sua participação na campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro em 2018, o sr. concluiu em seu livro que “às vezes o impossível é o mais provável de acontecer”. Acha que ele poderia ganhar novamente, mesmo estando em segundo lugar nas pesquisas?
Temos dois tabus nestas eleições. Um deles será quebrado. O primeiro é que um presidente em primeiro mandato jamais perdeu a reeleição desde o retorno da democracia. O segundo é que um candidato que aparecia como líder nas pesquisas às vésperas do pleito nunca foi derrotado. Então, qualquer que seja o resultado das urnas, haverá uma quebra de paradigmas. Bolsonaro é um demagogo talentoso. Seria um erro descartar as possibilidades dele. Ele aumentou sua popularidade em oito pontos nos últimos dez meses. O presidente fez isso com o Auxílio Brasil, com o auxílio caminhoneiro, com o auxílio taxista, com o apoio das maiores igrejas, com cinco reduções do preço da gasolina, com o comício do 7 de Setembro e com o uso da máquina pública. Mesmo com tudo isso, ele ainda precisaria subir mais 8 pontos. Então sua vitória é improvável, mas não impossível.

Como o sr. define o bolsonarismo?
O bolsonarismo foi uma válvula de escape para várias correntes que permeavam a sociedade brasileira, mas que ainda precisavam de um representante para vocalizá-las. Ao assumir essas crenças, ele levou para o tatame do vale-tudo uma visão maniqueísta do Bem contra o Mal. Bolsonaro se considera um ungido de Deus, cuja missão é redimir todos os problemas desse público. Essa sua atuação destruiu o que era uma pauta idealista da nova direita, que pedia o fim do foro privilegiado, queria a prisão após condenação em segunda instância e afirmava não ter políticos de estimação. No lugar desses conceitos agora existe um culto à personalidade do grande líder, cujos seguidores estão dispostos a todo tipo de pirueta para justificar o injustificável. O bolsonarismo substituiu uma aliança liberal-conservadora por uma seita personalista, em torno de um caudilho.

DivulgaçãoEm uma eleição, o único pecado que não tem perdão é a chatice.
Qual é o macete para imitar Bolsonaro?
O vocabulário dele é limitado demais. O presidente usa inconscientemente várias palavras e pequenas frases em qualquer intervenção, seja para abrir o raciocínio, para concatenar ideias ou para fazer aquelas suas flatulências mentais. Exemplos são ‘no que depender de mim’, ‘em especial’, ‘porventura’, ‘afinal de contas’, ‘no meu entender’, ‘no tocante’, ‘nessa questão’, ‘eu costumo dizer’, ‘vai ser um ponto de inflexão’, ‘sem problema nenhum’, ‘e ponto final’, ‘agora tem que deixar bem claro’, ‘isso nós não vamos permitir’. Para imitá-lo é preciso manter as mãos abertas, deixar o indicador um pouco para a frente e fazer um movimento como que trazendo coisas para dentro. Linguinha solta, com mandíbula solta e o queixo para dentro. O capítulo que eu mais gostei de escrever no meu livro é ‘A política como entretenimento’, no qual eu destrincho como alguns candidatos buscaram dar uma veia mais lúdica para os seus discursos. Bolsonaro foi bem-sucedido nesse sentido. A linguagem tosca dele virou sinal de simplicidade. A grosseria virou espontaneidade. A destemperança virou independência. E assim ele virou presidente.

Se política é entretenimento, os candidatos da terceira via falharam em divertir os eleitores?
O ex-presidente americano Richard Nixon dizia que pior do que estar errado na política é ser chato. A disputa para presidente não é uma eleição para comodoro do iate clube. Quem olhar o Lula falando de fome ou o Bolsonaro de família perceberá que esses assuntos calam fundo no coração do brasileiro médio. Enquanto isso, os outros candidatos passaram muito tempo falando de tecnicalidades, com discurso tedioso, sem chance de conquistar o Brasil profundo. Falta a eles aquilo que sobra para Lula e Bolsonaro: a capacidade de se comunicar, mesmo que dizendo grandes absurdos. Esses dois titãs da política brasileira sugaram todo o oxigênio da campanha e se apossaram do debate. Em uma eleição, o único pecado que não tem perdão é a chatice.

A terceira via é chata?
Seus integrantes ficaram marcados por um discurso vazio e raso. Eles só falavam de SUS, democracia e vacina. Ok, concordo que essas são três coisas são muito importantes, mas elas não se conectam com a maioria população. As pessoas gostam daquilo que se parece com elas. Além disso, vários dos seus candidatos não têm a brasilidade de Lula e Bolsonaro. Eles não transcenderam os regionalismos e com isso entediaram os brasileiros. Faltou sotaque brasileiro para a terceira via.

DivulgaçãoDivulgação“Doria foi incapaz de esconder a sua sede pelo poder”
Por que o ex-governador de São Paulo João Doria não se manteve na briga?
Doria é um dos maiores ‘cases’ de não conversão de realizações concretas em prestígio eleitoral. Apesar de todo o mérito com a vacina Coronavac, ele cometeu erros que ajudaram a soterrar as pretensões eleitorais dele. Para começar, aquelas coletivas de imprensa fúnebres sobre vacinação foram excessivas. Com elas, Doria era sempre o portador das más notícias. Depois, ele fez algumas presepadas. Uma delas foi ir a um shopping em Miami sem máscara, quando todos os paulistas enfrentavam restrições severas. Outra foi se banhar de raios ultravioletas na cobertura de um hotel de luxo no Rio de Janeiro enquanto os comerciantes passavam sufoco. Esse tipo de imagem o povo compreende facilmente e condena. É muito mais fácil vilipendiar o Doria por estar em Miami no shopping do que chamar a atenção do grande eleitorado para o fato de que Bolsonaro ‘restringiu a delação premiada’, ‘limitou a prisão preventiva’ ou ‘sancionou o juiz de garantias’. Por fim, ele demonstrou uma obstinação obsessiva no cargo. Doria foi incapaz de esconder a sua sede pelo poder. Além disso, a retórica anglófila dele não colou.

Qual?
(Imita Doria) ‘Vamos fazer um novo business office em Dubai. Vamos montar uma business venture. Eu sou o CEO de São Paulo’. Em vez de falar que foi para Genebra, ele disse que foi para ‘Geneve’. O público brasileiro não recebeu isso muito bem. O povo tem a sensibilidade de notar quando se trata de algo artificial ou pré-programado. (Imita Doria) ‘Eu estou aqui esbanjando naturalidade e autenticidade. Esse foi o grande bordão que o meu staff programou no meu HD central’. Ele tinha aquela pose de robô devotado à cientologia. Geralmente, antes de interagir com qualquer um, ele fazia um preâmbulo carregado de elogios. (Imita Doria) ‘Você, Fulano de Tal, que é um jornalista arrojado, destemido, que tem as melhores práticas jornalísticas no seu coração’. No fim, as pessoas não o consideraram autêntico.

O sr. tem alguma técnica especial para imitar o Lula?
Ele foi a minha primeira imitação. Agora estou até meio enferrujado para voltar a fazer isso. Mas percebi recentemente que, depois do câncer na garganta, aquele trovão gutural ficou bem mais áspero. Talvez seja alguma sequela da operação a que ele foi submetido. Outra diferença é que ele perdeu a destreza para argumentar ou trazer histórias da sabedoria popular. Ele virou um cara meio carrancudo, machucado. Lula também tem se mostrado um candidato menos disciplinado. Ele deu várias declarações desastradas, como a de que policiais não são gente ou sua defesa do aborto. No passado, essas afirmações poderiam assinar o seu óbito político. Atualmente, isso não acontece porque a comunicação está muito pulverizada, e mesmo alguns absurdos acabam se afogando em meio a uma cacofonia. Mesmo com esses defeitos, Lula continua sendo um hábil comunicador de massas. Ele segue falando de picanha e cerveja como se essas coisas fossem cair do céu. Faz apelos aos sentidos, como o paladar e o olfato. Mexe com a memória afetiva. Essa qualidade de bom comunicador ninguém tira dele.

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  1. Muito boa leitura, lúcida e esclarecedora, para quem não pertence a nenhuma face da mesma moeda, de um lado Lula, do outro Bolsonaro.

  2. Uai! Então já temos um concorrente forte para 2026, o minerin Zema. O Sr. Me escuta governador? Eu OVO sim. Tentaram zoar ele bastante com isso é ele continuou firme e está aí jogando poeira no Kallil que preferiu escolher um lado

    1. Isso é história de “ignorante como os capiau (sic) do interior de São Paulo” (Lulla)

  3. Ótimas considerações , especialmente do Doria que com tantas realizações não conseguiu ser candidato .

  4. Vai enriquecer muito a nova CRUSOÉ se puder colaborar mais vezes, sempre! Excelente texto, com brilho e perspicácia nas avaliações…

  5. Enquanto a preocupação com a eleição presidencial é o centro das atenções o congresso nacional continuará repleto de delinquentes gatunando os cofres públicos, consolidando um aparato de impunibilidade e mantendo o país no atraso.

  6. O que faltou foi o sr. Sérgio Moro ser candidato. Os políticos corruptos (a grande maioria) manobraram para inviabilizar o único candidato viável e honesto com chances de ganhar a eleição. Políticos canalhas.

  7. Esse rapaz é inteligente e perspicaz! Parabéns pela entrevista! Quanto à Lula, ele acha que picanha e cervejinha no fim de semana são o máximo que um indivíduo pode aspirar!! Nada de escola, cultura, hospitais, transporte de qualidade! O discurso continua rasteiro!

  8. Esse cara poderia ser um bom político, tipo Kim Kataguiri, o MELHOR DEPUTADO FEDERAL de nosso Congresso composto, em sua grande maioria, de CANALHAS.

  9. Muito boa essa entrevista. André Marinho demonstra muita capacidade para o humor. É inteligente e capta bem os estereótipos de quem vai imitar. Adorei, especialmente quando ele mostra as características do Bozo e do Dória.

  10. Muito boa a reportagem. Parabéns! Atenção, Crusoé, a idade do André Marinho no texto é 28 anos (o que é certo), mas no áudio saiu 43 (devem ter confundido com a idade do ACM Neto).

  11. Excelente entrevista! Perguntas curtas, diretas. Entrevistado inteligentíssimo e conhecedor da brasilidade.Explicou corretamente (didático com os exemplos) o porquê dos fenômenos popularesco (o Brasil é caipira). Excelente conteúdo para estudo.

  12. Excelente .. vou votar : BRANCO e Confirmo. Lularapio e Bozo Psicopata não me representam. Não vou participar desse velório macabro .

  13. Que entrevista boa, Duda! Parabéns! (Só q qdo ele diz q a terceira via ñ conseguiu uma sintonia com o brasileiro é como jogar um balde de água fria... Estaremos sempre fadados a ser governados por gente gente tosca...)

  14. Jovem bonito, e de uma forma expressiva de se comunicar, teve estudo.e inteligente.porem discordo da unica coisaerrada.falar falar sobre a 3 via.O Pais esta no dominio do S,T,F onde o Gilmar e o chefao,o brasileiro classe media.nao tem vez.se falar o que pensa e perseguido. ai vem desculpas quando se manifesta e morre, Foi assalto a mao armada, foi suicidio, da pra entender?

  15. André Marinho era o único humorista imparcial no Pânico da Velha Pan. Agora, só restaram bolsocomentaristas na outrora querida emissora.

  16. Fiz um comentário bem negativo no artigo do Dr. Modesto Carvalhosa falando do povo brasileiro. Mas tenho que admitir que esse jovem André Marinho surge como uma luz no fim do túnel. É talentoso como ator, escreve bem e, o que é melhor, tem boas ideias.

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