O Brasil vive voltando
Por algum tempo existiu, na primeira metade do século 20, uma coisa chamada Sociedade ou Liga das Nações, criada na voga das negociações que encerraram a Primeira Guerra Mundial. A expressão “Liga das Nações” hoje em dia soa infeliz, porque “liga” faz pensar em futebol (os mais moços) ou em jarreteiras e honi soit qui mal y pense (os mais velhos e pouquinha coisa mais sabidos). Criada com aqueles objetivos nobres que todos podemos imaginar, ela não foi adiante: fraquinha, irresoluta, conturbada, não deu liga, como se diz. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando as nações se viram na necessidade, ou no capricho, de criar uma outra agremiação de países que a substituísse, apareceram com a ideia de Organização, e o resultado do que, unidas, as nações produziram está aí nos noticiários com regularidade entediante: a ONU.
Aliás, o amigo já sabe que eu sou dado a digressões, então receba esta: não é milagroso que o Brasil ainda use a sigla ONU e não a internacional UNO? Porque nós abandonamos o ADN em favor do DNA, sempre dissemos AIDS em vez de SIDA, e esquecemos a tradição boa e secular de aportuguesar nomes de monarcas estrangeiros – daí começamos a falar em Rei Charles e não Carlos, na Princesa Kate e não Catarina, no principezinho George e não Jorge, na ex-princesa Meghan e não Maria Alcina. Milagroso mesmo. Vamos ver até quando dura.
Mas ora bem, criada que foi com as mesmas intenções excelentes de sua antecessora, aí está a ONU e seu paiol de esquisitices since 1945 (como dizem os comércios): comissões, resoluções, peritos, técnicos, talvez até maestros e grafiteiros. E, por falar em esquisitices, vimos uma delas na terça-feira: deixar o Brasil abrir os trabalhos das suas assembleias gerais. Por que é que deixam isso a cargo do Brasil? Eu acho que é porque não tem problema chegar atrasado enquanto o Brasil fala: a sala começa meio vazia, vai enchendo junto com a linguiça que o discursador brasileiro enche também, e, no fim, tá todo mundo lá, aplaudindo e sendo aplaudido – todos salvos, ainda que nem sempre sãos. Em todo caso, se antes não fazia muito sentido essa abertura brasiliana, agora faz. Porque está na boca e na pena de todos dizer que o Brasil voltou.
Falando em aplausos: estando lá o nosso colosso presidencial impavidamente discursando, nem tão esfuziante, nem tão ravissante quanto sua álacre consorte, mas iluminado, garrido, florão d’América; oh, estando ele a discursar, percebeu-se que nem todos os embasbacados ouvintes lhe renderam o beneplácito protocolar dos aplausos. Não. Houve um ranheta. Houve um ranzinza. Houve um, oh, nem sei se digo. Ah, digo: houve um irreverente. Seu nome: Volodymyr Zelensky. Seu cargo: presidente da Ucrânia. Sua paciência, sua boa-vontade, sua simpatia em suma: nenhumas.
O ucraniano não demonstrou nem interesse, nem entusiasmo pelo sol que alumiava a sala e pelas palavras que matavam a sede dos esfomeados e a fome dos sedentos. Despeito? Talvez. Insensibilidade? Decerto. Desenxabimento? Com certeza. Ressentimento? Mas é claro. Sorte dele que a Suprema Corte da ONU (ele deve ter uma, né? Tem tanta coisa lá) é leniente com essas coisas. Se fosse aqui…
Felizmente o sentimento do resto do mundo foi muito mais caloroso, e o resumo que os fãs do presidente fizeram na imprensa e nas redes sociais foi mais do que convincente, foi decisivo: o Brasil voltou. Apesar da frieza ucraniana e do neoliberalismo, o Brasil voltou; apesar da maldade, das caras feias, da CIA, da Otan, dos antidemocratas, das tias do zap e do bode na sala, o Brasil voltou. O Brasil é isso, o Brasil é assim, o Brasil vive voltando: é possível que a gente já esteja em pleno 1930.
Talvez o Zelensky tenha se redimido na reunião que teve depois com o jamais assaz louvado. Talvez tenha, como é aliás de seu dever, se prostrado ante ser superior, batido no peito, pronunciado seu mea culpa em ucraniano. Esperemos que sim, que tenha reconhecido seus erros e prometido não repeti-los. Para o bem de sua alma.
Ah, sim, o discurso. Esta revista bingou com louvor quase todos os temas tratados pela Sacrossantíssima Excelência: Cuba, fome, democracia, Palestina, meio-ambiente, globalismo, Brics e, claro, ói nóis aqui ‘tra vêiz. Virtude adicional da arenga: sua Excelência, pelo visto, economizou dinheiro do erário dispensando o ghost writing e reciclando discursos de 2003, senão de 1983 ou até algum dos do Fidel de 1963.
É que o Brasil, volto a dizer, vive voltando. Segura aí, Cabral: já, já nós chegamos.
Orlando Tosetto Júnior é escritor
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Ótimo Tosetto! 👏👏
O país está voltando para um passado que devia ter sido esquecido e que agora reavivado com um jumento Descondenado megalomaníaco na presidência.
Os brasileiros adotaram AIDS e não SIDA porque entre nós temos o nome feminino Cida.
Voltando a achar ditadura normal, voltando a não criticar quem tá mandando, voltando a censurar coisas…
Tosetto. Tá demais essa sua coluna. Hoje, como sempre, impecável. Só rindo mesmo, porque as palhaçadas do gobierno não estão fazendo os brasileiros rirem.
Realmente é triste o contorcionismo do Lula pra tratar alguns temas e buscaratemder a algum objetivo prioritário da esquerda, creio