ReproduçãoTela de Oscar Pereira da Silva mostra desembarque de Pedro Álvares Cabral: rumo ao passado

O Brasil vive voltando

É possível que a gente já esteja em pleno 1930. Segura aí, Cabral: já, já nós chegamos
22.09.23

Por algum tempo existiu, na primeira metade do século 20, uma coisa chamada Sociedade ou Liga das Nações, criada na voga das negociações que encerraram a Primeira Guerra Mundial. A expressão “Liga das Nações” hoje em dia soa infeliz, porque “liga” faz pensar em futebol (os mais moços) ou em jarreteiras e honi soit qui mal y pense (os mais velhos e pouquinha coisa mais sabidos). Criada com aqueles objetivos nobres que todos podemos imaginar, ela não foi adiante: fraquinha, irresoluta, conturbada, não deu liga, como se diz. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando as nações se viram na necessidade, ou no capricho, de criar uma outra agremiação de países que a substituísse, apareceram com a ideia de Organização, e o resultado do que, unidas, as nações produziram está aí nos noticiários com regularidade entediante: a ONU.

Aliás, o amigo já sabe que eu sou dado a digressões, então receba esta: não é milagroso que o Brasil ainda use a sigla ONU e não a internacional UNO? Porque nós abandonamos o ADN em favor do DNA, sempre dissemos AIDS em vez de SIDA, e esquecemos a tradição boa e secular de aportuguesar nomes de monarcas estrangeiros – daí começamos a falar em Rei Charles e não Carlos, na Princesa Kate e não Catarina, no principezinho George e não Jorge, na ex-princesa Meghan e não Maria Alcina. Milagroso mesmo. Vamos ver até quando dura.

Mas ora bem, criada que foi com as mesmas intenções excelentes de sua antecessora, aí está a ONU e seu paiol de esquisitices since 1945 (como dizem os comércios): comissões, resoluções, peritos, técnicos, talvez até maestros e grafiteiros. E, por falar em esquisitices, vimos uma delas na terça-feira: deixar o Brasil abrir os trabalhos das suas assembleias gerais. Por que é que deixam isso a cargo do Brasil? Eu acho que é porque não tem problema chegar atrasado enquanto o Brasil fala: a sala começa meio vazia, vai enchendo junto com a linguiça que o discursador brasileiro enche também, e, no fim, tá todo mundo lá, aplaudindo e sendo aplaudido – todos salvos, ainda que nem sempre sãos. Em todo caso, se antes não fazia muito sentido essa abertura brasiliana, agora faz. Porque está na boca e na pena de todos dizer que o Brasil voltou.

Falando em aplausos: estando lá o nosso colosso presidencial impavidamente discursando, nem tão esfuziante, nem tão ravissante quanto sua álacre consorte, mas iluminado, garrido, florão d’América; oh, estando ele a discursar, percebeu-se que nem todos os embasbacados ouvintes lhe renderam o beneplácito protocolar dos aplausos. Não. Houve um ranheta. Houve um ranzinza. Houve um, oh, nem sei se digo. Ah, digo: houve um irreverente. Seu nome: Volodymyr Zelensky. Seu cargo: presidente da Ucrânia. Sua paciência, sua boa-vontade, sua simpatia em suma: nenhumas.

O ucraniano não demonstrou nem interesse, nem entusiasmo pelo sol que alumiava a sala e pelas palavras que matavam a sede dos esfomeados e a fome dos sedentos. Despeito? Talvez. Insensibilidade? Decerto. Desenxabimento? Com certeza. Ressentimento? Mas é claro. Sorte dele que a Suprema Corte da ONU (ele deve ter uma, né? Tem tanta coisa lá) é leniente com essas coisas. Se fosse aqui…

Felizmente o sentimento do resto do mundo foi muito mais caloroso, e o resumo que os fãs do presidente fizeram na imprensa e nas redes sociais foi mais do que convincente, foi decisivo: o Brasil voltou. Apesar da frieza ucraniana e do neoliberalismo, o Brasil voltou; apesar da maldade, das caras feias, da CIA, da Otan, dos antidemocratas, das tias do zap e do bode na sala, o Brasil voltou. O Brasil é isso, o Brasil é assim, o Brasil vive voltando: é possível que a gente já esteja em pleno 1930.

Talvez o Zelensky tenha se redimido na reunião que teve depois com o jamais assaz louvado. Talvez tenha, como é aliás de seu dever, se prostrado ante ser superior, batido no peito, pronunciado seu mea culpa em ucraniano. Esperemos que sim, que tenha reconhecido seus erros e prometido não repeti-los. Para o bem de sua alma.

Ah, sim, o discurso. Esta revista bingou com louvor quase todos os temas tratados pela Sacrossantíssima Excelência: Cuba, fome, democracia, Palestina, meio-ambiente, globalismo, Brics e, claro, ói nóis aqui ‘tra vêiz. Virtude adicional da arenga: sua Excelência, pelo visto, economizou dinheiro do erário dispensando o ghost writing e reciclando discursos de 2003, senão de 1983 ou até algum dos do Fidel de 1963.

É que o Brasil, volto a dizer, vive voltando. Segura aí, Cabral: já, já nós chegamos.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

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  1. O país está voltando para um passado que devia ter sido esquecido e que agora reavivado com um jumento Descondenado megalomaníaco na presidência.

  2. Tosetto. Tá demais essa sua coluna. Hoje, como sempre, impecável. Só rindo mesmo, porque as palhaçadas do gobierno não estão fazendo os brasileiros rirem.

  3. Realmente é triste o contorcionismo do Lula pra tratar alguns temas e buscaratemder a algum objetivo prioritário da esquerda, creio

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