Divulgação"Juízes devem garantir o estado de direito. Quando eles desrespeitam a lei, ficamos todos consternados"

A Justiça não deve censurar

Ex-assistente da Suprema Corte americana, a professora Jane E. Kirtley diz que juízes padecem da tentação de atropelar as leis para calar a imprensa
10.05.19

Jane E. Kirtley, professora de ética e comunicação da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, é uma profunda conhecedora dos percalços que a imprensa sofre ao redor do mundo. Ainda durante o governo de Barack Obama, ela produziu um pequeno manual sobre lei de mídia para o Departamento de Estado americano. Em 65 páginas, discorreu sobre os benefícios e as responsabilidades da imprensa livre em vários países. Para tanto, usou como base seus estudos sobre a liberdade de expressão em ex-repúblicas da União Soviética e países da Ásia Central. Comparou como diversas sociedades lidam com a questão e estabeleceu alguns padrões em comum. “Na União Soviética, havia frases na Constituição a favor da liberdade de expressão, mas obviamente não havia uma imprensa livre por lá”, disse ela a Crusoé dias após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, censurar uma reportagem da revista que citava o presidente da corte, Dias Toffoli.

“O mais importante para que esse princípio (o da liberdade de expressão) seja respeitado é ter um Judiciário independente. Se o Judiciário não proteger os jornalistas contra atos arbitrários, então não restará nada”, afirma. Jane Kirtley tem formação dupla, em direito e em jornalismo. Trabalhou como advogada e como repórter. Por catorze anos, foi diretora-executiva do Comitê de Jornalistas para a Liberdade de Imprensa. Também foi jurada do prestigioso Pulitzer, o mais importante prêmio da imprensa americana, e atuou como amicus curiae em julgamentos da Suprema Corte, em Washington. Na semana passada, ela chegou ao Brasil para uma rodada de palestras sobre liberdade de expressão promovidas pela Embaixada dos Estados Unidos. A seguir, os principais trechos da conversa.

O Judiciário brasileiro abriu em março um inquérito para apurar fake news. Como a sra. vê isso?
Uma das coisas que mais me preocupam atualmente é que diversos governos ao redor do mundo têm proposto combater fake news. Eles argumentam que é importante proteger o público de informações falsas. Em um primeiro momento, parece até um objetivo compreensível. O problema é quando nós, cidadãos, passamos a depender de juízes, governantes ou deputados para dizer o que é verdade e o que não é. Isso não é algo que cabe a eles decidir. Só conhecemos a verdade quando fatos e ideias diferentes são colocados lado a lado e debatidos na arena pública. É apenas a partir do confronto entre diversas perspectivas que podemos chegar a uma conclusão. Quando governantes, deputados ou juízes apagam ou censuram informações, isso elimina a chance do contraditório. Autoridades e funcionários públicos deveriam agir com muito mais cautela nesta área.

Autoridades atacarem jornalistas é uma tendência mundial?
Vivemos em um tempo perigoso para jornalistas. Na Venezuela e nas Filipinas, há uma cruzada contra o que dizem ser fake news. Em todos os casos, trata-se de um esforço dos políticos para impedir que o público tenha acesso a informações das quais eles não gostam. Em países que não têm tradição bem consolidada de proteger a liberdade de imprensa, esse tipo de comportamento causa muita preocupação.

Por que os ataques contra as fake news nos Estados Unidos não geram inquéritos, atos de censura ou problemas maiores?
Nós, americanos, temos uma longa tradição que estabeleceu como deve ser a relação entre a imprensa e o presidente. Na minha vida, vi vários presidentes se desentendendo com a imprensa. Mas eles nunca questionaram o princípio fundamental de que uma imprensa livre é necessária no país. Sabemos que é preciso ter bons jornalistas para vigiar o governo e para manter o público bem informado.

Divulgação/University of NevadaDivulgação/University of Nevada“Ao longo das décadas, decisões a favor da imprensa têm sido tomadas tanto por juízes conservadores quanto por liberais”
A liberdade de imprensa está mais protegida nos Estados Unidos do que em outros países?
Tenho feito muitos estudos em países em desenvolvimento, incluindo repúblicas que eram da União Soviética e países da Ásia Central. O mais importante para que esse princípio seja respeitado é ter um Judiciário independente. Não basta ter leis que estabelecem a independência da imprensa. Se o Judiciário não proteger os jornalistas contra atos arbitrários do governo, então não restará nada. Na União Soviética, havia frases na Constituição a favor da liberdade de expressão, mas obviamente não havia uma imprensa livre por lá. Em países em desenvolvimento, também acontece com certa frequência que os juízes sejam corrompidos ou possuam filiações políticas, o que afeta sua independência.

No despacho de censura determinado contra Crusoé e O Antagonista, em abril, foi justamente o Judiciário que tomou a iniciativa contra os veículos. Isso ocorre em outros países?
Qualquer pessoa que trabalhe com liberdade de imprensa no mundo sabe que o Judiciário foi além de suas funções nesse recente caso brasileiro. Sei que os países possuem estruturas legais diferentes. Nos Estados Unidos, temos a common law. No Brasil, o Código Civil. Mas há um pano de fundo nesse caso que extravasa as fronteiras nacionais. Juízes devem garantir o estado de direito. Por isso, quando eles desrespeitam a lei, ficamos todos consternados.

Por que isso acontece?
Na cidade onde vivo, Minneapolis, no estado de Minnesota, tivemos recentemente um caso muito controverso. Um policial que nasceu na Somália atirou e matou uma mulher em uma viela. Ele se justificou dizendo que ela tentou atacá-lo, mas ela o tinha chamado para reportar um crime. Como a vítima era da Austrália, o caso ganhou repercussão internacional. Durante o julgamento, a juíza tomou medidas muito duras contra a imprensa. Para começar, ela escolheu salas pequenas da corte, para não permitir a presença de muita gente para assistir. Também não deixou que os jornalistas levassem laptops ou outros aparelhos eletrônicos. Não permitiu fotógrafos nem câmeras no recinto. Ela ainda proibiu os artistas que fazem desenhos de retratar os jurados. Havia restrições incríveis. Aparentemente, ela não estava a par de quais são as nossas leis, quais são os nossos princípios constitucionais e quais foram as decisões históricas da Suprema Corte em relação ao acesso da imprensa a um julgamento.

O que explica esse tipo de decisão?
Os juízes normalmente detêm muito poder. Às vezes, eles pensam que podem decidir algo que acham estar certo, ainda que isso vá contra os princípios legais do país. Eles também podem tomar decisões seguindo uma vingança pessoal contra uma organização jornalística ou simplesmente decidir coisas contra jornalistas porque não gostam de ser criticados.

Isso não soa absurdo?
Nos Estados Unidos, já tivemos um presidente dizendo que os juízes poderiam abrir ações contra pessoas que os criticam. Ele falou que ofensas poderiam desestabilizar a impressão que os cidadãos têm do Judiciário, algo nessa linha. Não é o tipo de coisa que acontece com frequência em meu país, mas esse raciocínio existe. Os juízes, como são muito poderosos, às vezes entendem que, apesar de existirem leis dizendo que a imprensa deva ser respeitada, podem tomar decisões especiais em casos específicos. É preciso ter um caráter bem constituído para não usar o poder que se tem para suprimir coisas das quais não se gosta. Muitos juízes em outros países do mundo provavelmente adorariam fazer a mesma coisa que os magistrados brasileiros fizeram.

DivulgaçãoDivulgaçãoA professora em passagem pelo Brasil, onde participou de evento pelo Dia Mundial da Liberdade de Imprensa
Donald Trump tem atacado bastante o New York Times e o Washington Post. Esse tipo de comportamento causou danos para esses veículos?
Eis aí um fenômeno divertido. O New York Times e o Washington Post conquistaram milhares de novos assinantes desde que esses ataques começaram. Muita gente que antes não dava importância alguma em ter acesso a esses veículos agora está pagando mensalidades para eles. Eles ficaram indignados com as coisas que o presidente está dizendo e decidiram apoiar a imprensa. Para os que acham que devemos ter acesso a todos os tipos de ideias e que uma cobertura independente é necessária, os comentários de Trump só os deixaram mais determinados a apoiar as organizações que estavam sendo atacadas.

A experiência democrática é que determina como uma sociedade vai reagir?
É uma combinação de fatores. No caso brasileiro, pelo que vi, o povo reagiu e considerou o ato de censura como um exercício inapropriado do Judiciário. Não havia justificativa para a medida. Nos Estados Unidos, também é assim. Há uma percepção generalizada de que a censura é inconstitucional. Não lembro de um único caso nos Estados Unidos de uma decisão de censura que tenha sido mantida pelas cortes. As exceções só existem para casos que envolvem segredos empresariais, de propriedade intelectual. A Primeira Emenda da Constituição não protege a divulgação desse tipo de informação. Se alguém publicar a fórmula da Coca-Cola na internet, a empresa pode pedir para retirar esse conteúdo do ar. Para os demais casos, a Suprema Corte tem reafirmado o seu compromisso com a Primeira Emenda. Há alguns anos, um jornalista publicou dados de contas bancárias de pessoas envolvidas em escândalos na internet. Aqueles que foram afetados recorreram aos tribunais, alegando invasão de privacidade. No início, o juiz decidiu que o material deveria ser retirado. Depois, após um apelo, ele voltou atrás. O magistrado se informou melhor da lei e percebeu que o povo em geral tinha ficado indignado com o fato de o conteúdo ter sido apagado.

A Suprema Corte americana hoje é composta majoritariamente por juízes conservadores, mais próximos do Partido Republicano. Isso afeta as decisões sobre liberdade de imprensa?
Eis uma questão muito complicada. Temos muitos exemplos na história americana de presidentes que nomearam pessoas para a Suprema Corte pensando que elas votariam de um jeito em uma determinada questão, mas acabaram se frustrando. Um presidente chegou até a dizer que a indicação tinha sido o maior engano da sua presidência. E pior: a menos que o ministro renuncie ou sofra um impeachment, ele fica no posto por muitos anos. Olhando para a liberdade de imprensa, pode-se constatar que muitas decisões importantes para resguardar a Primeira Emenda foram tomadas por juízes considerados progressistas ou de esquerda. Mas muitos ministros conservadores também agiram assim, em defesa da liberdade de expressão. A razão para atuarem dessa maneira é que, ao proteger o discurso com o qual eles discordam, eles também defendem aquele com os quais eles estão de acordo. O juiz Antonin Scalia (1936-2016) era conservador e não tinha grande amizade por jornalistas, mas ele foi a favor do direito de publicar um artigo anônimo. Também questionou a lei que proibia a imprensa de publicar o nome de pessoas que tinham sofrido abuso sexual. Ele disse que ocultar o nome das vítimas iria contra o objetivo de prevenir este tipo de crime. Ao longo das décadas, decisões a favor da imprensa têm sido tomadas tanto por juízes conservadores quanto por liberais.

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  1. Afirmo, contudo, que existem redutos universitários onde TODOS os alunos estudam, portam-se com respeito no ambiente universitário. Refiro-me ao IME, ITA e às Academias das FFAA. Conclui-se, pois, que o problema da baderna, licenciosidade, depredação, ausência de respeito, absoluta mediocridade, desvio de recursos, etc., está no MODELO adotado nas Universidades desde à escolha dos Reitores até a tal "autonomia universitária" impostas desde a época do farsante FHC cujo ápice ocorreu na era PT

    1. Desculpem a ausência de contexto. O comentário seria para a publicação em outro post.

  2. "New York Times" e "Washington Post" passaram 2 anos produzindo artigos sobre o conluio entre Trump e a Rússia como se fossem fatos devidamente checados, de fontes confiáveis e intelectualmente honestos na intenção de informar. 2 anos depois, 35 milhões de dólares depois, milhares de escutas telef. depois, etc, nada se provou. Trump então não tinha o direito de reclamar desses jornais? De se indignar contra eles? De afirmar sua inocência? É falso o pressuposto que toda matéria é honesta.

  3. Desde quando a restrição a liberdade de imprensa é uma pauta conservadora? O Duda Teixeira partiu dessa premissa numa pergunta, como se os progressistas fossem os defensores da liberdade de imprensa e os conservadores não! Aqui no Brasil, quem quer regulamentar os meios de comunicação é a esquerda!

  4. A imprensa brasileira é sensacionalista e não observa o direito, pra atingir popularidade ultrapassa preceitos legais. Uma guerra entre os vários meios de comunicação.

  5. Entendo que a imprensa no Brasil atua de forma sensacionalista, teatral e parcial. Daí a justiça ingerir e regular certos comportamentos. A imprensa deve ser totalmente imparcial, até mesmo quando for atacada.

  6. Crusoé pq vocês censuram meus comentários no Antagonista? E ficam chorando pq foram censurados pelo stf. O sujo falando do mal lavado. Que falta de coerência.

  7. Eu assinei a Crusoé depois da censura do STF. Sinceramente não conhecia a revista, mas faço questao de apoiar a liberdade de expressao. Afinal, já existem leis que julgam quem excede o direito, então vejo a censura como uma imposição autoritária de quem se sente inseguro dos próprios poderes. Infelizmentel os ministros do STF já mostraram que estão acima da Constituição e do povo brasileiro.

    1. Eu também assinei após a ssusenra do Tofoles e Moraes. a Crusoé deveria publicar o aumento das assinaturas e enfregar na cara da ala podre do SUPREMO !.

    2. Crusoé e Antagonista censuram as opiniões dos seus leitores e assinantes, é o sujo reclamando do mal lavado.

  8. A liberdade de imprensa deve ser respeitada por todos os órgãos de governo de todos os poderes. A imprensa, porém, deve ser responsável na divulgação de notícias, como é o caso da Crusoé.

  9. É bom lembrar que a ação do STF não foi para proteger o governo, judiciário não é governo, e sim a corte, em notícias verdadeiras com provas reais, notadamente a membros do supremo. Acho aí muito mais danoso.

  10. Já que aqui a Justiça é toda diferente, Bolsonaro deveria lançar mão do remédio amargo, mas relativamente indolor de 65. Aumentar o número de ministros "supremos" para 17 (número icônico) temporariamente, para dar certo equilíbrio nas decisões que seriam realmente pautadas na Constituição. Daqui dois anos, saem 2. Já cairia para quinze. Penso que teríamos um pouco menos de injustiças, e apoio aos rapaces em julgamento.

  11. Essa entrevista precisa chegar ao grande público. Dita por um expoente do EEUA, ganha força sobre a percepção popular e sua capacidade de criticar e reclamar de abusos, quer de políticos, quer de juízes.

  12. Observo um equívoco na edição do texto traduzido. Quando a entrevistada menciona o sistema jurídico americano como sendo o da Common Law ( expressão corretamente não traduzida no texto), certamente ela mencionou o sistema brasileiro como sendo o do CIVIL LAW, que não pode ser traduzido como o sistema do código civil, como constou do texto, por se tratarem de coisas distintas. Portanto, melhor seria não ter se traduzido a expressão CIVIL LAW, pois não é possível fazer uma tradução que a defina.

  13. Apenas uma ressalva a respeito do exemplo mau colocado, a meu ver, pela entrevistada e pelo conservador Scalia de defesa da liberdade de expressão: - a publicação, a contragosto, do nome das pessoas que sofreram abuso parece-me uma instrumentalização e uma vitimização social que desrespeitam a intimidade do indivíduo. Difícil compreender como libertadora uma provável banalização da dor íntima, para fins de pedagogia social. De modo nenhum assume contornos terapêuticos.

    1. * mal colocado, em vez de mau (sic) colocado. Desculpem-me.

  14. Essa matéria e a entrevista nos fazem ficar ainda mais alertas contra os abusos judiciais. Enquanto não houver a necessária depuração nas Cortes Superiores este risco será sempre iminente.

  15. Não gosto de comparar Juízes americanos com brasileiros. Alguns das altas cortes tupiniquins seriam no máximo Oficiais de Justiça naquele país.

  16. Tenho certeza que, assim como ocorreu com o New York Times e Washington Post, a Crusoé também ganhou novos assinantes após a injuriosa investida do Toffoli e Alexandre Morais, esses imorais paladinos da justiça.

    1. Essa suprema corte e podre,tb digo nos Estados Unidos não serviriam nem para afastar as cadeiras

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