Ricardo Stuckert/PR via FlickrLula autorizou sacrificar a articulação de um antigo aliado, Calheiros, para satisfazer um novo aliado, Lira

A hora da raposa

Ao confrontar o Congresso e perceber que não conseguiu se impor pelo rugido, Lula decidiu transmutar-se e buscar adaptar-se ao contexto adverso
01.03.24

O senador Renan Calheiros (MDB-AL) foi o principal articulador da CPI das Braskem. Seu objetivo era utilizar as investigações para questionar acordos feitos pelo atual prefeito, JHC (PL), com a empresa em torno dos afundamentos de bairros localizados no entorno de minas de sal-gema. JHC também é aliado no estado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), inimigo declarado de Calheiros.

No ato da instalação do colegiado, no entanto, Renan não foi escolhido relator. O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), preferiu nomear o sergipano Rogério Carvalho (PT). Em resposta, Renan se retirou afirmando que não “emprestaria seu nome para simulacros investigatórios” e que seu rebaixamento teria sido promovido por “mãos ocultas, mas visíveis”. Estava se referindo a uma ação do governo articulada para proteger JHC e, por tabela, Arthur Lira, de possíveis constrangimentos provocados pela investigação.

Há muitos interesses envolvidos na CPI que, no fundo, o governo nunca desejou. O caso é acompanhado de perto pela Justiça, pelo Ministério Público e por órgãos de controle do mercado e está claro para todos as razões de Calheiros para criar barulho no Congresso que pudesse ajudar a prejudicar a campanha pela reeleição de JHC. O detalhe que faz toda a diferença, no entanto, é que Lula autorizou sacrificar a articulação de um antigo aliado, Calheiros, para satisfazer um novo aliado, Lira.

Faz sentido não deixar brigas locais ameaçarem o equilíbrio nacional. Mas, olhando em retrospectiva, o episódio mostra uma mudança forte de orientação do governo em relação a Arthur Lira. Em outra oportunidade, Lula gostaria de ver Lira enfraquecido, mas não agora. O governo deixou o papel de leão para vestir a fantasia da raposa ou, em outras palavras, abandonou o enfrentamento e partiu para a sedução.

Embora tenha aprovado seus principais temas no ano passado, o Planalto teve que pagar um preço muito alto de articulação: a maioria das proposições apresentadas pela Fazenda foram desidratadas e o Congresso passou muitos de seus interesses à revelia do governo, como foi o caso da desoneração de setores econômicos e a criação de um cronograma impositivo para executar as emendas.

Mesmo vociferando que o país ainda era um país presidencialista e com uma ajuda do STF, Lula parece ter percebido, no entanto, que o custo para seu governo tem sido muito alto no Congresso. Trata-se de uma baita virada.

No início do segundo semestre de 2023, ao atrasar a reforma ministerial para acomodar neoaliados do Centrão, o governo apostou que as perspectivas de bons resultados na economia e o crescimento da popularidade do petista atrairiam o Congresso por gravidade e que seria fácil estimular traições no entorno de Lira, enfraquecendo-o e obrigando-o a render-se.

Mesmo com as investidas de Lula, o colegiado montado por Lira que manda na Câmara mostrou-se coeso e fiel, a economia e a popularidade do presidente não engrenou e, ao final do ano, o que se viu foi um cenário mais desafiador. O Congresso aumentou consideravelmente seu controle sobre o Orçamento, derrubou muitos vetos importantes para o governo, como o que permitia tirar despesas da meta fiscal, impôs um cronograma de execução de emendas e desonerou setores econômicos e pequenas cidades por conta própria.

O governo ensaiou manter o enfrentamento, desfazendo várias dessas medidas por MP e vetos durante o recesso parlamentar. Entretanto, voltando do Carnaval, o clima visivelmente é outro. Apesar do veto ao cronograma, se comprometeu a empenhar 30 bilhões de reais imediatamente, retirou a reoneração dos setores da MP, mandando um projeto de lei, mais palatável politicamente, e está tentando devolver 5,6 bilhões de reais de emendas parlamentares bloqueadas.

Chamam atenção também os mimos dedicados a Lira. Além de subjugar Calheiros no episódio da CPI, colocou Rui Costa na interlocução com a Câmara e reduziu a presença de Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais e seu desafeto. Lula também teria prometido apoiar em 2025, na sucessão da Câmara, o candidato que o próprio Lira indicar, algo fundamental para que ele mantenha influência nos próximos dois anos (“teria”, porque esse suposto acordo foi anunciado apenas por Lira).

Maquiavel, dentre suas inúmeras contribuições ao pensamento político, afirmou que políticos precisam se adaptar às suas circunstâncias quando não puderem mudá-las (em geral, essa é a regra). Além disso, ele dizia que o Príncipe, que luta por meio de leis, às vezes também deve saber usar os métodos dos animais, citando o Leão e a Raposa como modelos. Um sabe assustar os lobos, mas não é bom em reconhecer armadilhas. O outro não assusta ninguém, mas é hábil em evitar arapucas.

O camaleão Lula saiu das eleições se percebendo como o rei da selva. Ao confrontar o Congresso e perceber, no entanto, que não conseguiu se impor pelo rugido, decidiu transmutar-se e buscar adaptar-se ao contexto adverso. Ao investir em recuos parlamentares, coquetéis e churrascos no Alvorada, anuncia que, agora, chegou a hora da raposa. Renan Calheiros que o diga.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

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  1. O mais hábil operador político das últimas décadas. Derruba passarinhos em voo apenas com o olhar. A falta de caráter é tão gritante que desperta até uma certa compaixão.

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