C-Span via YouTubeClaudine Gay, a ex-reitora de Harvard, durante sabatina no Congresso dos EUA.

Os representantes da representatividade

Esse conceito-fetiche do novo progressismo está na base de escândalos em Harvard e no nosso Ministério dos Direitos Humanos
22.12.23

Representatividade está na ordem do dia, do ano, da década. Empresas privadas, governo, imprensa, indústria do entretenimento – todos dizem se importar com a gêmea dizigótica da diversidade. Enquanto sua irmã tem uma personalidade mais sociável – um bar, clube ou local de trabalho diversificado é aquele que reúne variadas etnias, culturas e orientações sexuais –, a representatividade é mais individualista e exibida: em geral, depende da visibilidade de algumas pessoas pertencentes a minorias.

Embora seja uma das tantas noções dogmáticas da política identitária, a representatividade não deve ser descartada ou desdenhada. Para ficar em um exemplo fácil, é significativo para crianças e jovens negros que o cinema hoje ofereça mais heróis e super-heróis negros. Fora do universo Disney, porém, espera-se que membros de minorias apresentem currículos substantivos antes de serem alçados a posições totêmicas. Digo isso pensando no fiasco de Claudine Gay, primeira reitora negra de Harvard, que vem sendo denunciada por plágio em seu trabalho acadêmico. Ainda que todas as acusações sejam desmentidas, o escândalo jogou luz sobre o fato de que ela publicou apenas onze artigos acadêmicos – e nenhum livro. Não se concebe que alguém possa comandar uma das universidades mais prestigiosas do mundo com uma produção tão pífia.

No Brasil, a representatividade é aquele princípio que a esquerda valoriza muito, mas só quando o governo cai nas mãos da direita. É o que nos ensinam as indicações de Lula ao altos cargos do Judiciário. Parece que agora Flávio Dino é negro, embora já tenha se declarado branco (e anos depois pardo) à Justiça Eleitoral. Não sendo uma figura mítica como Tirésias ou ficcional como o Orlando de Virginia Woolf, é improvável que o primeiro-ministro comunista do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia se converta em mulher. Seu substituto no Ministério da Justiça, ao que tudo indica, tampouco será uma mulher negra.

 

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A democracia moderna é “representativa” em um sentido mais amplo e abstrato do que aquele prescrito nas cartilhas identitárias. Aqui, o representante por excelência não precisa pertencer a este ou aquele grupo oprimido: basta ser consagrado pelas urnas. Mas ocupantes de cargos público não eletivos – do policial ao ministro do STF e do diretor de escola ao ministro da Educação – também carregam a responsabilidade de representar o Estado. E há ainda representantes da sociedade civil – líderes de ONGs, sindicatos, associações de classe e movimentos sociais – que às vezes são ouvidos nos conselhos e “conselhões” organizados pelo governo.

Pouca atenção foi dada ao papel central que esse enrosco entre diferentes níveis de representação teve em um escândalo recente: os passeios de Luciane Barbosa Farias, mulher de um chefão do Comando Vermelho do Amazonas, pela Esplanada dos Ministérios. As respostas ao caso foram bem previsíveis. O governo deu explicações protocolares sobre a presença de Fabiane – ela mesma condenada em segunda instância por crimes relacionados à facção – nos ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos. Muitos petistas, seguindo seus primeiros e piores instintos, atacaram os jornalistas do Estadão que trouxeram a história a público. E a oposição bolsonarista, sempre em busca de barulho nas redes sociais, trombeteou a existência de uma associação entre os ministérios e o crime organizado – acusação que não é referendada nem sugerida nas reportagens do Estadão.

Na nota sobre a participação de Luciane no Encontro de Comitês e Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura – ocasião em que ela viajou a Brasília com tudo pago pelo erário –, o Ministério dos Direitos Humanos tentou empurrar o fiasco para longe do governo federal. A indicação dos participantes foi responsabilidade EXCLUSIVA dos comitês estaduais, diz a nota, com enfáticas letras maiúsculas. Uma representante do comitê do Amazonas ouvida pelo Estadão diz que nada impedia Luciane, presidente ou dona da Associação Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), de participar do evento. Tudo regular…

Haverá quem discorde raivosamente, mas me parece justo e razoável que associações de parentes de presidiários sejam ouvidos pelo Ministério de Direitos Humanos. De outro lado, deve ser óbvio que tais associações estão sujeitas a serem sequestradas por interesses escusos – isto quando já não são, na origem, fachadas de organizações criminosas. Faltou critério e cuidado para fazer essas distinções essenciais. Dizer que a falha foi estadual não alivia a responsabilidade do ministério.

Há uma questão anterior que cai inteira no colo do ministério: para que serviu o tal “encontro de comitês e mecanismos”? Em texto publicado no site do ministério dos Direitos Humanos antes das reportagens do Estadão, uma organizadora do evento afirma que ele foi “essencial para diálogo e estabelecimento das diretrizes para criação dos sistemas estaduais de prevenção e combate a tortura” (a crase está ausente no original). Isso é só uma forma prolixa de dizer que o encontro serviu para organizar novos encontros.

O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, patrocinador dessa festa triste, existe desde 2013. Deveria estar levantando e divulgando dados sobra sua área de ação e tomando medidas efetivas contra a tortura, não discutindo diretrizes para o próprio funcionamento. Existem por aí muitas comissões e conselhos e mesas-redondas que reúnem representantes da própria representatividade só para produzir vento. Calhou do encontro no ministério de Silvio Almeida ter gerado uma tormenta.

Não tive a paciência para ouvir as mais de quatro horas de esclarecimentos que o ministro prestou a uma comissão da Câmara. Duvido que os deputados bolsonaristas tenham levantado as questões que proponho acima (até porque nenhum deles deve ter interesse em políticas públicas que coíbam a tortura de presos). Também duvido que o ministro tenha respostas satisfatórias.

 

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Caberia aqui alguma digressão sobre a “crise da representatividade” das democracias, tema quente entre cientistas políticos. Mas isso exigiria um artigo mais longo e um articulista melhor qualificado.

Deixo só uma indicação de leitura: O Congresso, conto de Jorge Luis Borges incluído na coletânea O livro de areia, explora de forma imaginativa as insuficiências contidas na ideia de representação universal. Só a ficção consegue chegar aos limites de nossas mais bem-intencionadas ambições.

 

Jerônimo Teixeira é escritor e jornalista

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  1. Para variar, Jeronimo é incapaz de fazer uma crítica ao governo atual sem trazer juntos os bolsonaristas. Fazer isso não é ser neutro, imparcial ou justo; é apenas ser burro.

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