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Não confio em presidente de costeletas

O voto de protesto é bem compreensível, mas duvido que as extravagâncias de Milei possam resolver a crise crônica da Argentina
23.11.23

Lamento a vitória de Javier Milei, mas me alegro com a derrota de Sergio Massa.

Devo ter afugentado leitores com essa primeira frase tão macambúzia. Será mais otimista posicionar a alegria antes do lamento?

Vejamos: me alegro com a derrota de Massa, mas lamento a vitória de Milei.

Não, isso é trocar seis por meia dúzia (se estivermos falando de seis pesos argentinos e meia dúzia de dólares, a troca será bem mais complicada do que os eleitores de Milei foram levados a acreditar).

Se os argentinos houvessem optado mais uma vez pelo peronismo, teria, confesso, começado esta coluna da mesma forma, apenas invertendo os nomes: lamentaria a vitória de Massa, celebraria a derrota de Milei. Pois o que lastimo mais que tudo é que a Argentina tenha chegado a esses dois nomes no segundo turno. A sorte do Brasil não foi melhor no ano passado.

Fiquei mais animado com o país vizinho em 2015, quando Mauricio Macri venceu as eleições, depois de doze anos de peronismo no poder. Foi um desperdício do meu entusiasmo: Macri revelou-se um fiasco. Onde já se viu um liberal recorrer ao congelamento de preços para controlar a inflação? Economia não é minha praia, mas eu passei pelo Plano Cruzado. Sei que esse negócio não dá certo.

Talvez Milei, com suas propostas bombásticas de dolarização e extinção do Banco Central, consiga resolver a parada. Parece ser este o cálculo básico do eleitor argentino: se um homem moderado da centro-direita fracassou, é porque chegou a hora de recorrer à heterodoxia, ao político “antissistema”. Torço para que funcione. Mas sou cético.

Minhas desconfianças foram atiçadas pela reportagem que Caio Mattos publicou nesta Crusoé em outubro – em particular, por um evento que o jornalista cobriu em Buenos Aires: o ato do encerramento da campanha para o primeiro turno. Jovens apoiadores receberam Milei na Movistar Arena como se ele fosse “uma estrela do rock”, diz a matéria. O então candidato surgiu na pista e foi carregado pela multidão até o palco.

Até aqui, nada que escape ao figurino de um demagogo convencional (em Peixe na Água, Mario Vargas Llosa diz que foi carregado dessa forma várias vezes em sua campanha para presidente do Peru – e que detestou a experiência. Mas Vargas Llosa perdeu a eleição: o sucesso político estará talvez reservado aos que apreciam cavalgar o povo). O que me deixou uma sensação aziaga foi a oração liberal que o auditório entoou junto com o astro libertário: “O liberalismo é o respeito irrestrito ao projeto de vida do próximo, baseado no princípio da não agressão e na defesa do direito à vida, à propriedade e à liberdade.”

Nada de errado no texto em si: o tal respeito ao “projeto do próximo” distancia Milei de Bolsonaro, seu termo de comparação mais frequente na imprensa brasileira (o argentino, aliás, é contra o aborto mas a favor do casamento gay). É o ato coletivo de recitar um texto decorado – não uma mera palavra de ordem, nem um jingle – que me traz evocações autoritárias, além de suscitar aquele constrangimento frente ao ridículo que coloquialmente chamamos de “vergonha alheia”. Existe aqui um componente de imersão na manada que em tese não se coaduna com o cerne individualista do ideário liberal. Entoada pela multidão, a frase que deveria ser uma declaração de princípios se converte na adesão fanatizada a uma doutrina.

Políticos doutrinários tendem a ser tacanhos e rígidos. Tais características são toleráveis no Legislativo, onde alguns parlamentares se especializam em defender pautas radicais de grupos ou corporações diversas, mas são perigosas em cargos executivos. Se não conseguir aprovar suas ousadas reformas no Congresso, que caminho tomará o próximo presidente argentino? Se conseguir efetivá-las e a economia seguir fazendo água, saberá fazer os ajustes que a realidade impõe? Consagrado pelo voto de protesto, como já dizia a reportagem de Crusoé, Javier Milei chega à Casa Rosada carregando um peso trágico pouco condizente com sua figura histriônica: se ele falhar depois das alternativas convencionais à esquerda e à direita já terem fracassado, não sobrará muita esperança. A Argentina terá se tornado uma crise crônica.

A pose de popstar de Milei é outra caraterística que me desperta reticências (ia dizer “ojeriza”, mas quero ser generoso com a escolha dos argentinos). Isso me cheira a personalismo. A Argentina já tem o peronismo e seu filhote, o kirchnerismo. Sobra espaço para um “mileinismo”? Bem, talvez faça falta por lá um personalismo de direita fazendo frente aos de esquerda. Por aqui, os dois polos estão ocupados por bolsonarismo e lulismo. O Brasil sempre nos dá oportunidade de citar as palavras imortais do moribundo Mercúcio, em Romeu e Julieta: “a plague o’ both your houses” (“malditas sejam vossas duas casas”, na tradução de José Francisco Botelho).

Releio o que escrevi até agora, em busca da chave de ouro para encerrar o artigo. Constato que minhas restrições a Milei são sobretudo de ordem estética: não gosto de sua figura, da forma como se expressa, da oração libertária que ele ensinou a seus fãs. Talvez seja assim porque a Argentina de Borges, Bioy Casares, Arlt e Piglia seja para mim antes uma literatura do que um país. Um presidente liberal deveria ser um novo Sarmiento! (Não li os livros que Milei publicou, mas acho seguro afirmar que ficam um tanto abaixo da estatura de Facundo, ou Civilização e Barbárie).

Domingo Faustino Sarmiento governou a Argentina de 1868 a 1874. Enfrentou rebeliões militares e uma epidemia de febre amarela, levou escolas para o interior, criou bibliotecas populares, expandiu as linhas de telégrafo e de trem, fez o primeiro censo do país e consolidou seu ordenamento jurídico. Não usava costeletas.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Neste artigo não se tocou no ponto chave: Milei é um economista bem formado e que inclusive ja escreveu alguns livros. Pode ser que sua teoria não funcione dadas as peculiaridades da economia e da sociedade argentina. Mas com certeza produzirá melhores resultados do que os esperados aqui com este ministro da fazenda torpe e que aceita ser conduzido pelas decisões de um presidente ignorante e despreparado.

  2. Desejo à Argentina que Milei restrinja sua loucura ao seu perfil estético, e que surja um lado inteligente que possa conduzir seu país para uma retomada da economia.

  3. A Argentina se deixa levar constantemente pela pior armadilha da democracia: o voto no "menos ruim". Eleitor, se você se submete a comer a merda que te põem no prato, eles nunca vão deixar de te dar merda pra comer, como muito bem sabemos pelo que vivemos aqui no Brasil.

  4. Seu sentimento/desconfiança é compreensível. Torcer que ao menos seja mais inteligente ou menos limitado que o bolsonaro.

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