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Cândido, ou o dinizismo
Se você já torceu para um time comandado por Fernando Diniz, sabe muito bem que a vitória é um mero detalhe. Quer dizer, os jogos seguem valendo três pontos ou uma eliminação, mas, para Diniz, o jogo se trata de muito mais do que isso. Entendo o que ele quer dizer e concordo. O futebol é o esporte mais apaixonante do mundo porque é possível perder uma partida jogando melhor que o adversário ou ganhar jogando pior. A derrota, portanto, não significa necessariamente que os jogadores e o treinador estão fazendo um trabalho ruim, muito menos que não virão, no futuro, a ganhar títulos como resultado do treino e do empenho em campanhas frustradas. Mesmo diante de tudo isso, perder continua sendo ruim demais — e pode impedir a continuidade de um trabalho promissor.
Diniz se divide hoje entre o Fluminense e a seleção brasileira, não se sabe exatamente até quando. Ironicamente, após ganhar a Copa Libertadores da América inédita com o Fluminense — contra um dos piores Boca Juniors da história, diga-se —, o treinador estabeleceu outros recordes impressionantes pela seleção: conseguiu perder pela primeira vez para a Colômbia numa Eliminatória de Copa do Mundo e perdeu também a primeira partida atuando em casa na competição — a derrota para a Argentina no Maracanã estabeleceu outra marca inédita, de três revezes seguidos no torneio classificatório.
Ao final do jogo, Diniz disse que o resultado foi injusto. “Não digo [que foi] a melhor [partida], pois contra a Bolívia o time foi muito bem. Mas, se considerar a rivalidade, a Argentina vinha com muita confiança e foi campeã do mundo há menos de um ano. Por outro lado, nós viemos com o time muito mexido. Considerando todas as variáveis que envolveram esse jogo, se não foi a melhor [partida], foi uma das melhores“, disse o treinador após o jogo. Concordo que o Brasil não merecia perder, mas também não mereceu ganhar. E os argentinos souberam ganhar, de modo rasteiro, como de costume, mas ganharam.
Para Diniz, o que importa é a imposição no jogo, a posse de bola, o domínio das ações, a troca de passes. De fato, jogando assim, na teoria, é mais provável ganhar. Na prática, contudo, basta um estrategista fanático pela vitória, como os portugueses José Mourinho ou Abel Ferreira, para demolir a teoria. Abel só está treinando o Palmeiras há mais de três anos porque percebeu que, antes de dar espetáculo, precisava fazer o time ganhar. O resultado são dois títulos da Libertadores e um do Campeonato Brasileiro.
Diniz foi demitido após trabalhos promissores ao longo de toda a carreira porque nunca se dobrou à realidade: fica quem ganha. No Fluminense, seu ímpeto quase que suicida rendeu frutos, enfim. O treinador também ganhou um Campeonato Carioca neste ano, mas sua permanência à frente da seleção brasileira, que estaria se encaminhando no caso de uma sequência de vitórias, parece se tornar cada vez mais distante, mesmo com as crescentes incertezas sobre a vinda de Carlo Ancelotti. Será que isso vai mudar alguma coisa nas postura e perspectiva de Diniz? Provavelmente não.
“Como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim”, ensina o filósofo Pangloss em Cândido, ou o Otimismo (Penguin-Companhia). Para ele, tudo é o melhor possível e “os males particulares constituem o bem geral, de sorte que, quanto mais males particulares houver, tanto melhor irão as coisas”. Voltaire castiga Pangloss e seu pupilo Cândido ao longo de todo o livro, para testar a teoria do filósofo. É tanto sofrimento que, ao final da história, Cândido questiona: “Pois bem! Meu caro Pangloss, enquanto eras enforcado, dissecado, espancado e remavas nas galeras, achavas sempre que tudo ia o melhor possível?”.
O mestre responde: “Mantenho a minha primitiva opinião, pois, afinal, sou filósofo: não me convém desfazer-me, visto que Leibnitz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil”. Pangloss arremata algumas páginas depois: “Todos os acontecimentos estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache“.
É assim, por enquanto, a carreira do treinador Fernando Diniz. Uma série de derrotas, muitas delas humilhantes e inacreditáveis, até a glória de um campeonato continental. Questionado sobre o que é o otimismo, Cândido sintetiza a doutrina de seu mestre Pangloss assim: “É a fúria de sustentar que tudo está bem quando está tudo mal”. O dinizismo se define acrescentando a palavra futebol ao final da frase.
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