A ex-presidente Dilma RousseffDilma Rousseff, a quem recai boa parte da culpa pela grande depressão brasileira de 2014-2016, foi campeã em conceder desoneração fiscal - Foto: Reprodução

O país da meia-entrada (sim, esse título de novo)

A reforma tributária foi enfim aprovada no Congresso. E para a surpresa de ninguém, está mais repleta de furos que um queijo suíço
16.11.23

Foi o economista Marcos Lisboa quem primeiro publicou o que viria a se tornar um epítome brasileiro. Em julho de 2013, em meio aos fervorosos protestos que tomavam as ruas, Lisboa publicou uma coluna onde traduzia o Brasil como “o país da meia-entrada”.

Entre as inúmeras tentativas de criar benefícios para alguns, ignorando que os custos recaem sobre os demais, Lisboa cita os benefícios da nossa indústria automobilística nascente, que neste ano completou seus 67 anos (em tempo, portanto, para se aposentar).

Vivemos, como descreve Lisboa, a quem Maria da Conceição Tavares, economista histórica do PT, carinhosamente descreve como um “débil mental” (graças à agenda econômica defendida por ele, que levou à criação do Bolsa Família), em um país que distribui benefícios a qualquer um que possa arcar com o lobby correto.

E, mais uma vez, pudemos testemunhar isso ocorrendo à luz do dia, na casa do povo, o Congresso Nacional.

Após décadas de debate, o Congresso enfim aprovou, ou em partes, a tal reforma tributária.

Em suma, a reforma tributária se propõe a corrigir um problema central no Brasil: deixar claro, na cara de todo mundo, o quanto o Estado toma de você em cada produto ou serviço que você compra.

A criação de um IVA, um “Imposto sobre Valor Agregado”, não chega a ser novidade no mundo. De fato, o primeiro IVA surgiu ainda nos anos 60, na mesma época em que fazíamos nossa última reforma tributária, que levaria à criação do ICMS e outros impostos.

A novidade, portanto, consiste no brasileiro se deparar com a dura realidade do país, até então ignorada.

Como você já deve ter visto nas redes sociais, teremos o maior IVA do mundo, em torno de 27,5%. No texto da reforma, porém, consta que “o IVA não deverá alterar a carga tributária”.

Em um necessário parênteses, carga tributária é o total de impostos em relação à riqueza produzida. Já a alíquota é o percentual cobrado em um único imposto. A carga tributária consiste portanto no somatório de todos os impostos, com alíquotas individuais, somados.

Fica evidente portanto que, se o país terá a maior alíquota de IVA do mundo, isso não é uma novidade oriunda da reforma tributária, mas uma constatação da realidade atual.

Sim. O Brasil tem a maior carga tributária do mundo sobre o consumo. O IVA não cria isso, mas torna isso evidente. Um absurdo, agora aos olhos de qualquer um.

Jogar a reforma tributária fora por descobrirmos o tamanho do IVA, portanto, seria o equivalente a jogar fora o sofá ao descobrir uma traição. Pode ajudar no momento de raiva inicial, mas você continuará sendo corno, ou pagando o imposto (o que, em se tratando de Brasil, muitas vezes dá na mesma).

Mas, se a ideia é mudar de verdade as coisas, há alguns bons conceitos na teoria econômica que podem ajudar a entender os próximos passos. E a ideia de “meia-entrada”, é um deles, mas não só.

Primeiro, é importante destacar que um Estado se financia de três formas: dívida, impostos e inflação.

Como você já deve ter notado ao olhar para a vizinha Argentina, um Estado em que a arrecadação cai, mas as obrigações de gastos continuam, irá inevitavelmente recorrer às outras duas saídas antes de começar a cortar seus gastos.

No caso argentino, em que a dívida está toda dolarizada, a saída do governo foi partir para a impressão de dinheiro, culminando em uma inflação galopante.

Não há perspectiva de que o Brasil siga um caminho similar, dado que podemos financiar déficits públicos com dívida (até um certo patamar).

Neste cenário, nosso Estado se financia majoritariamente com impostos. É um cenário no qual podemos atuar com alguma “ordem”, mais clara do que a dos hermanos.

Dito isso, é importante observar que, ao clamar por menores impostos, e não por menores gastos do governo, pode-se levar o país a situações bastante ruins, como vimos em 2015.

Dilma Rousseff, sobre quem recai boa parte da culpa pela grande depressão brasileira de 2014-2016, foi campeã em conceder desoneração fiscal, isto é, em “reduzir impostos”. Foram 528 bilhões de reais.

Foram impostos sobre a folha de pagamentos que o governo abriu mão de arrecadar mas que, sem surpresa, não geraram aumento do PIB ou novos empregos.

Se a solução para a economia fosse simplesmente diminuir impostos, portanto, Dilma seria muito bem vista por toda a população.

Mas não. Nem de longe discutir impostos menores resolverá qualquer coisa na nossa economia.

E é aí que entra a questão da meia-entrada.

Usando matemática simples. Suponha que o governo tenha obrigação de gastar 100 reais e cobre impostos de 100 indivíduos. Cada um deles terá de pagar 1 real em imposto.

Mas, se 20 indivíduos recebem um benefício para pagar apenas metade, então teremos 10 reais em arrecadação “faltando”. Essa arrecadação portanto, irá recair sobre outros indivíduos, elevando a quantia paga por cada um para 1,12 real.

E foi exatamente isso que o Congresso decidiu.

A Zona Franca, que garante 7 bilhões de reais em subsídios para gigantes que produzem refrigerante e cerveja, continuará intacta.

Médicos e advogados irão pagar menos impostos. O setor de hotelaria e turismo? Também pagará menos. Qualquer um que tenha um bom lobby irá pagar menos.

O motivo, claro, é o que lembra Gordon Tullock, um dos fundadores da Teoria da Escolha Pública. Segundo o “Paradoxo de Tullock”, para cada 1 dólar em lobby, as empresas recebem cerca de 100 dólares em benefícios.

O lobby portanto faz todo sentido.

Neste sentido, em vez de bradarmos contra a conta final do IVA, deveríamos estar direcionando os canhões para o poder do Congresso de beneficiar grupos de interesse.

Deveríamos, claro, não fossem as pessoas bem articuladas e com poder de pautar o Congresso, elas próprias donas de lobby próprios.

No fim, terminamos todos naquele belo resumo de Frédéric Bastiat, figurinha carimbada nas colunas de quem vos escreve, segundo o qual “o Estado é a grande ficção segundo a qual todos esperam viver às custas de todos”.

Por fim, a reforma tributária possui seus méritos, tornando os problemas mais fáceis de detectar, mas tendo perdido boa parte da potência inicial, que permitiria ao país crescer 20% do seu PIB apenas com maior racionalidade econômica.

Nosso Congresso sepultou a ideia de racionalidade nos impostos, uma vez que ela implica menor poder aos políticos.

Ainda assim, a reforma tende a ser melhor do que o atual cenário tributário. O que não significa, porém, que as discussões e necessidades de mudança tenham cessado por aqui. Ao contrário, elas se tornaram imperativos cada vez maiores, uma vez que a reforma não será a bala de prata que irá tirar o país da estagnação de produtividade em que estamos há cinco décadas.

 

Felippe Hermes é jornalista

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