ReproduçãoQuadro de Benedito Calixto: o proclamante aparece minúsculo e erguendo não uma espada, mas um chapeuzinho

O anticlímax da República

Regime tem sido farto em constituições e padrões monetários, mas ai de quem insinuar que o Império era mais estável
16.11.23

Em novembro de 1889 já existia e era popular uma coisa chamada fotografia; entretanto, o ato do marechal Deodoro da Fonseca – a Proclamação da República – não foi fotografado (ou, se foi, as fotos não nos chegaram). Virou, quatro anos depois, um quadro do pintor Benedito Calixto. Um quadro meio confuso, cheio de cavalos e canhões e fumaça – um quadro meio profético – no qual o proclamante ou proclamador, ainda que esteja ao centro, aparece minúsculo e erguendo não uma espada, mas um chapeuzinho. Ora, é difícil a gente se emocionar com um herói que erga um chapeuzinho em vez de um gládio, mas assim começou, em clima de anticlímax, a nossa república: não com um estrondo, apesar do fumacê, mas com um anauê.

Fosse como fosse, anticlimática ou não, a coisa valeu, e desde então estamos assim, republicanos, vivendo sob as virtudes que a “coisa pública” nos inspira, nos faz inalar sem cessar.

Uma dessas virtudes é a sucessão de Constituições: uma em 1891, outra em 1934, outra em 1937, mais uma em 1946, outra em 1967 e a vigente, de 1988, emendada 143 vezes (até hoje) e posta em dúvida outras tantas pelas idas e vindas dos tribunais. Isso pode fazer o amigo pensar que a República, ou, vá, a nossa República, é um sistema muito instável do ponto de vista legal, principalmente se a gente considerar que o Império teve uma Constituição só, a de 1824. Engano seu, amigo. Não deixe que essa pobreza, essa falta de imaginação constitucional da Coroa te iluda. Cuidado, assim você ficar até parecendo antidemocrático.

Outra dessas virtudes é a sucessão de padrões monetários. A República começou com os réis (1889), que, abalados mas não vencidos pelo Encilhamento, se aguentaram até 1942; nesse ano a República passou para os cruzeiros, que eram réis com três zeros a menos e notação menos complicada. Os cruzeiros viraram cruzeiros novos (em 1967), também com três zeros a menos. Em 1970, sem cortar zero nenhum, os cruzeiros deixaram de ser “novos” e voltaram a ser meros cruzeiros. Em 1986, cortando mais três zeros, vieram os cruzados, que, em 1989, derrubando outros três zeros, se fizeram “novos” e já no ano seguinte, 1990, sem cortar zeros, viraram de novo cruzeiros. Em 1993 o cruzeiro perdeu mais três zeros e se tornou o cruzeiro real. Até que, antecedido por uma espécie de truque retórico chamado URV, veio, em 1994, o real que aí está, cuja unidade aliás é a mesma dos velhos réis – será por isso que é, até agora, o padrão mais duradouro da República? Esse real, aliás, cortou mais do que três zeros do padrão antigo: seu valor foi de 1 para 2750. De novo: não vá o amigo pensar que a República é financeiramente menos estável do que o Império, só porque o Império teve uma única moeda, os réis. Olha os guardiões da democracia aí, rapaz.

Terceira virtude é a própria sucessão de Repúblicas, intercaladas com ditaduras que também elas se consideravam Repúblicas. Primeiro foi a “República da Espada” (e não do chapeuzinho), levada adiante pelos Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, militares pois, até 1894. Depois veio aquilo que se chamou ora “República Velha”, ora “Primeira República”, com a chamada “política do café com leite”, na qual se revezavam presidentes paulistas (café) e mineiros (leite), e que se segurou de 1895 até a Revolução de 1930. Essa Revolução, na qual tudo ainda era República, impediu a posse de Júlio Prestes e pôs no poder Getúlio Vargas, que capitaneava uma Aliança dita Liberal e que foi nosso primeiro ditador republicano, criador do Estado Novo (hein?). Getúlio permaneceu ditando até 1945, se segurando até mesmo diante de uma guerra civil (1932). Em 1946 aparece a “República Populista” (hein? mas como?), também chamada de “Quarta República” (e quais foram as outras duas?), que durou da eleição do general Eurico Gaspar Dutra até a deposição de João Goulart, em 1964, no golpe militar daquele ano, e que teve lá pelo meio a eleição legítima do antigo ditador, Vargas, que se matou ainda no cargo. O golpe militar também se tinha na conta de Republicano e até de democrático, e se segurou até a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1984, e a posse de José Sarney, em 1985. De lá para cá temos a “Nova República”, essa que está aí diante dos nossos olhos e, principalmente, narizes. De novo, não vá o amigo pensar que esse aluvião de Repúblicas seja politicamente menos estável do que o tedioso Império, que teve só dois imperadores e uma carinha de regentes. Você não vê pujança, não vê arrojo, não vê humanidade e perdão num país que deu voto tanto a ex-ditador quanto a ex-detento? Se liga, os cara tão de olho.

Eu podia acrescentar a essa lista de virtudes as dos muitos próceres, as dos grandes vultos que vêm dando brilho inaudito à instituição republicana; mas aí, amigo, não é que a coisa não caiba num artigo: não cabe nem na Biblioteca de Babel.

Enfim, foram esses fatos, virtudes e vultos que celebramos anteontem, cheios de orgulho, sabedores de que a nossa dura cerviz democrática não se curva mais a cetro nenhum, homens livres que somos para não dar um pio contra a felicidade e a liberdade em que vivemos afundados até as sobrancelhas. Aproveitemos, aproveite aí. Na praia, se puder, que tá um calor do cão. Digo, tá um sol republicano para cada um.

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  1. Excelente resumo da nossa tragédia banânica! O único regime melhor que uma república democrática seria uma ditadura, cujo ditador fosse completamente esclarecido, incorruptível, voltado para as necessidades da população. Mas como isso não existe, fiquemos com a república.

  2. Nosso povo é realmente sossegado. Absurdos acontecem e a maioria prefere ficar sentada na frente da TV Globo engolindo o que eles querem transmitir.

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