A tatuadora alemã Shani LoukA alemã Shani Louk, que foi raptada pelo Hamas: o pecado da alegria - Foto: Reprodução/Instagram

Quando a barbárie atacou a balada

O massacre em um festival de música eletrônica escancara a natureza monstruosa do Hamas, que luta não por um estado palestino, mas pelo extermínio de Israel
13.10.23

“Allahu akbar”, entoam os quatro homens com metralhadoras que desfilam pelas ruas de Gaza, na caçamba de uma caminhonete. Aos pés deles, o corpo seminu de uma mulher, deitada de bruços, inerte, cabelo longo cobrindo parte das costas tatuadas.

O rosto da mulher não aparece no vídeo, mas sua mãe conseguiu identificá-la pelo cabelo e pelas tatuagens. Seu nome é Shani Louk. Ela é alemã, radicada em Israel, onde trabalha como tatuadora. Tem 23 anos.

(O tempo presente das frases anteriores é esperançoso. A mãe de Shani disse ter recebido informações de que a filha está em um hospital em Gaza, mas, no momento em que escrevo, terça-feira à noite, não sei a jovem está viva ou morta.)

O erro, o pecado, o crime de Shani Louk: na sexta-feira, dia 6, ela foi a uma rave nas proximidades da fronteira com a Faixa de Gaza – um festival de música chamado Universo Paralello, promovido por um DJ brasileiro. A festa foi atacada pelo Hamas nas primeiras horas da manhã do sábado.

Duzentas e sessenta pessoas foram assassinadas porque queriam dançar.

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Em sua conta no Twitter (aliás, X), o cientista político americano Yascha Mounk, autor de O Povo contra a Democracia, documentou a hesitação da imprensa americana e britânica em qualificar a ofensiva do Hamas com a palavra certa: terrorismo. Ele também acompanhou a resposta de presidentes e primeiros-ministros ao ataque: o canadense Justin Trudeau só condenou os atos do Hamas como terroristas cinco horas depois depois do francês Emanuel Macron tê-lo feito.

No Brasil, notas da diplomacia e do presidente condenaram os atos terroristas, mas evitaram enunciar o nome do grupo que os cometeu. Mounk não se preocupou em registrar as posições brasileiras. Nem teria razão para tanto.

Não deveria haver discussão sobre a questão, mesmo entre aqueles que se opõem à política israelense nos territórios palestinos. Só o que se viu no festival de música eletrônica em que Shani Louk foi raptada (e possivelmente morta) já bastaria para escancarar a natureza obscena das ações do Hamas.

Não há argumento nem sequer falácia que permita dizer que uma rave é um objetivo militar válido. Uma área desértica provisoriamente ocupada por civis desarmados e embriagados está muito longe de ser um assentamento permanente em território que deveria pertencer a um potencial estado palestino. E não se obtém ganho estratégico nem avanço territorial com a matança indiscriminada de festeiros.

O objetivo era apenas espalhar o medo e a morte. E o objetivo foi atingido.

Banheiro químico da rave, com manchas de sangue
 

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Fanáticos, militantes e “lobos solitários” associados a diversos grupos terroristas islâmicos têm voltado seu ódio contra shows e baladas.

Em 2016, um atirador matou 49 pessoas na Pulse, uma boate gay em Orlando. Foi o mais grave ato de violência já cometido contra o público LGBT nos Estados Unidos. O autor do atentado – que acabou morto pela polícia – deixou mensagens afirmando que suas ações foram motivadas pela morte de um chefão do Estado Islâmico em um bombardeio americano no Iraque. Quase 50 inocentes mortos para vingar um terrorista.

No ano seguinte, um homem-bomba matou 22 pessoas (mais ele mesmo) em um show de Ariana Grande em Manchester. O Estado Islâmico reivindicou responsabilidade pelo ataque, mas o terrorista também tinha ligações com a Al-Qaeda.

Até o massacre na rave israelense, o mais letal ataque a uma balada era aquele cometido em 2015 na boate Bataclan, em Paris. Armados com metralhadoras e explosivos, sete terroristas do Estado Islâmico invadiram o local, onde acontecia um show da banda americana Eagles of Death Metal. Mataram 130 pessoas – metade dos mortos no Universo Paralello.

Fiquei tentado a afirmar que o terror islâmico trava uma guerra contra a alegria, mas nem toda a alegria é luminosa. Os militantes do Hamas que exibiram Shani Louk como um troféu de guerra pelas ruas de Gaza parecem imbuídos de felicidade. Uma felicidade perversa, sádica, mas felicidade ainda assim.

Na exibição da vítima seminua, a fantasia ambivalente de todo puritano encontrou sua realização mais patológica: o fascínio erótico pela tentação conjugou-se monstruosamente à repulsa pela fonte de toda tentação – que, de acordo com o catecismo dos fundamentalistas, só pode ser a mulher.

Ao contrário do que pensam muitos setores da esquerda, essa não é uma doutrina progressista ou emancipatória.

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As flagrantes falhas da inteligência e das forças armadas israelenses no sábado levantaram comparações com o fiasco defensivo inicial na Guerra do Yom Kippur, cinquenta anos atrás. Há uma diferença fundamental entre os dois eventos: não se vislumbra, no Hamas, nenhuma liderança com a visão de Anwar Al Sadat. O presidente egípcio entrou na guerra de 1973 para defender seu país – e pelas mesmas razões selou a paz com Israel em 1979. Como deve ficar claro pela retórica e pelas ações do Hamas, o grupo terrorista não luta de fato por um estado autônomo palestino: sua motivação maior é o extermínio de Israel.

Até há pouco divididos em torno do caviloso projeto de reforma judicial defendido pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, os israelenses agora se unem na defesa do país. Uma campanha militar na Faixa de Gaza, porém, será longa e custosa, com muitas mortes de civis. Netanyahu vem prometendo a aniquilação definitiva do Hamas, mas, em uma fala à nação, deixou escapar essa frase: “O que faremos com nossos inimigos nos próximos dias reverberará entre eles por gerações”. Esta é uma promessa não de paz, mas de beligerância eterna.

Em setembro, The Economist trouxe um artigo esclarecedor sobre o fracasso dos Acordos de Oslo, que em 1993 ambicionaram mapear um caminho para a paz entre Israel e um futuro estado palestino. Foi presciente: o acordo agora está enterrado em definitivo.

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Há um outro vídeo de Shani Louk, no qual ela aparece sorridente, dançando no festival. Haverá futuro para essa alegria autêntica – ou só para a felicidade sádica?

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  1. OS "ESQUERDISTAS" SÃO TÃO DOENTES QUANTO OS INTEGRANTES DO HAMAS. SÃO CRIMINOSOS E SÁDICOS. QUE DEUS MANDA SEU SEGUIDOR MATAR E ESTUPRAR MULHERES E CRIANÇAS. S´O DEUS DO MAL (O DIABO), ESTE SIM, O VERDADEIRO DEUS DOS TERRORISTAS.

  2. E agora a parte que mostra como é doentio defender Hamas: a maior parte de frequentadores de raves são pessoas que pregam pacifismo e estilos de vida alternativos, e a vasta maioria apoia a Palestina. Essa é a parte que o povo que defende coisas como Hamas por aqui, o mundo Ocidental, é incapaz de compreender, seja por anti-americanismo bufão ou por burrice mesmo: o Hamas, dada a chance, mataria todos eles.

  3. Tendo em conta que a doutrina islâmica que o Hamas segue proíbe até música, o ataque a um festival de música pode não ter sido um alvo por isso, mas terá sido um bônus agradável sob a sua perspectiva

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