Reprodução/InstagramJenni Hermoso em partida da seleção espanhol na Copa do Mundo feminina

O beijo do Quixote

A repercussão sobre o beijo de Luís Rubiales se tornou mais relevante do que o que de fato ocorreu
05.10.23

Escrevo tarde sobre o beijo de Luis Rubiales em Jenni Hermoso. A esta altura, ele já não é mais presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), foi suspenso pela Fifa e é investigado pelo Ministério Público por “suposto crime de assédio sexual“. Está tudo encaminhado e, obviamente, nada do que eu disser terá o poder de mudar o destino do cartola espanhol. Por isso digo, semanas após a Espanha se sagrar campeã mundial de futebol feminino, que não enxerguei abuso no beijo quixotesco.

Não há nada de sexual ou libidinoso naquele ato, feito de boca bem fechada — em outra situação, seria chamado de “selinho” — e logo após o dirigente se pendurar na jogadora. Um gesto de companheirismo, que acabou deixando claro que os dois não eram tão companheiros quanto o dirigente imaginava. Condenável mesmo foi a pressão de Rubiales sobre a jogadora para tentar remediar a situação. O que importa, contudo, é o que Jenni sentiu por ter sido envolvida nessa história.

Para além dos dramas e motivações pessoais, a interpretação sobre o que ocorreu se tornou mais relevante do que o que de fato ocorreu. O episódio foi usado como ilustração da Espanha machista, deu azo a análises sociológicas e artigos de jornal, motivou passeatas e atraiu condenações públicas de autoridades. O presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, chegou a dizer que o pedido de desculpas do dirigente espanhol não foi o suficiente. Em casos de repercussão pública como esse, nada será suficiente.

O episódio expôs o abismo que existe entre a realidade e as pretensões de igualdade entre homens e mulheres. As relações seguem exigindo um decoro mínimo em público e sobrevive uma expectativa por cavalheirismo que, na utopia feminista, não teria mais lugar no mundo. Os discursos não resistiram a uma imagem, que me lembrou o clássico O Engenhoso Fidalgo Don Quixote de la Mancha (Alfaguara), não apenas pela atitude desvairada de Rubiales.

Miguel de Cervantes escreveu no século 17 um tratado sobre as relações entre homens e mulheres ao qual muito pouco de relevante se acrescentou desde então. O pai do romance moderno o fez pela boca da pastora Marcela, responsabilizada injustamente pela morte de Grisóstomo, a quem a bela pastora negou seu amor.

O céu me fez, como vocês dizem, bela, e de tal maneira que, sem poder fazer mais nada, minha beleza os move a me amar; e, pelo amor que me demonstram, vocês dizem, e até querem, que eu seja obrigada a lhes amar. Sei, com a compreensão natural que Deus me deu, que tudo que é belo é amável; mas não consigo ver que, por ser amado, o belo esteja obrigado a amar quem o ama”, diz a pastora no enterro de Grisóstomo.

E, como ouvi dizer, o amor verdadeiro não se divide e deve ser voluntário, e não forçado. Sendo assim, como acredito, por que vocês querem que eu entregue minha vontade à força, obrigada apenas porque dizem que me amam? Se não, digam-me: se, assim como o céu me fez bonita, tivesse me tornado feia, seria justo eu reclamar de vocês porque não me amam?”, questiona Marcela, que diz ter escolhido a solidão dos campos para preservar a própria liberdade.

Aqueles que encantei com a vista, desenganei com as palavras. E se os desejos são sustentados por esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Grisóstomo nem a ninguém, sobre o fim de nenhum deles se pode dizer que se matou pela minha crueldade, mas pela sua teimosia”, completa a pastora, para o silêncio constrangido dos amigos do defunto. Afora esse sermão de estatura gigantesca, sobra muito pouco além de moinhos de vento nos debates sobre sexo e gênero.

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  1. A história de Marcela é uma das brilhantes pérolas do romance de Don Quixote, sem dúvidas. Quanto ao caso em questão: 1 - triste ver, como você bem nota, que a conquista ficou totalmente esquecida, o que é injusto com a equipe e com o esporte; 2 - um selinho não é libidinoso nem garante qualquer laço íntimo, mas tem de ser consensual, especialmente em público. A jogadora tem o direito de se sentir invadida e o presidente dançou justamente, só restando a si próprio para jogar as culpas.

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