Foto: Ricardo Stuckert/PRXi Jinping com Lula: mundo vive uma “Segunda Guerra Fria” entre EUA e China

Política externa e diplomacia brasileira: uma visão de três décadas

Com Lula, diplomatas deixaram de atuar como assessores presidenciais, tendo o PT assumido essa função
29.09.23

Entre 1993 e 2023, o Brasil e sua política externa atravessaram turbulências políticas e fases de euforia ou de retraimento. Agora, o país está novamente sob a liderança de um presidente que deu grande destaque à presença diplomática do país no decorrer de seus dois primeiros mandatos. À diferença do “momento unipolar” dos anos 1990, com a visível hegemonia global dos Estados Unidos, o mundo desta terceira década do século 21 aparece como sensivelmente transformado, num cenário de uma possível “Segunda Guerra Fria”, sobretudo em função da fulgurante ascensão da China como grande ator global e do desafio da Federação Russa aos equilíbrios instáveis da ordem ocidental ainda dominante.

De fato, o contexto político e diplomático do período conheceu seguidas mudanças em relação ao antigo sistema de relações internacionais da Guerra Fria (1947-1991), passando de uma fase de unilateralismo imperial – que correspondeu à grande preeminência estratégica dos Estados Unidos, a partir da implosão e fragmentação da União Soviética, URSS  – e de profundas alterações na geopolítica europeia, com a adesão da maior parte dos seus satélites da Europa central e oriental às “ferramentas” econômicas ocidentais (Gatt-OMC, União Europeia e OCDE) e militares (Otan). Essa fase foi seguida pela lenta, mas decisiva, ascensão da China, economicamente um gigante comercial e industrial, e pela restauração da Rússia como poder militar, com capacidade de projeção em teatros regionais.

Uma “Segunda Guerra Fria” foi anunciada pela postura de competição estratégica dos EUA em relação à China – que se tornou mais assertiva sob Xi Jinping – e, sobretudo, de novos desafios lançados pelo líder russo Vladimir Putin, querendo recompor antigas esferas de influência da finada União Soviética, a partir de sua guerra de agressão contra a vizinha Ucrânia. Abriu-se, assim, um cenário de definições dramáticas a serem tomadas pela diplomacia brasileira nesse novo contexto de vagos projetos de uma “nova ordem mundial”.

Em 1993, Fernando Henrique Cardoso passou de chanceler a ministro da Fazenda no governo do vice-presidente empossado Itamar Franco, após o impeachment de Fernando Collor. Cardoso comandou um importante processo de estabilização econômica, depois de várias tentativas frustradas ao longo da aceleração inflacionária do final do regime militar e na primeira década após a redemocratização. Os chanceleres seguintes, sob os dois mandatos, foram da carreira ou extraídos da política e do mundo civil, nas figuras dos diplomatas Celso Amorim, ainda sob Itamar Franco, e de Luís Felipe Lampreia (1995-2000), sucedido pelo jurista Celso Lafer (2001-2002), que já tinha exercido o cargo brevemente em 1992. Um retorno a chanceleres diplomatas ocorreu nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, com o mesmo Celso Amorim (2003-2010), seguido de três outros na gestão Dilma Rousseff: Antonio Patriota (2011-13), Luiz Alberto Figueiredo (2013-15) e Mauro Vieira (2015-16). Com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, dois senadores do PSDB de São Paulo se sucederam na função: José Serra (2016-17) e Aloysio Nunes Ferreira (2017-18). Finalmente, os dois chanceleres do presidente Jair Bolsonaro foram de novo diplomatas de carreira: primeiro Ernesto Araújo (2019-21), depois Carlos França (2021-22), que o substituiu, em razão dos problemas causados por uma política externa e uma diplomacia marcadamente ideológicas, em ruptura com padrões tradicionais do Itamaraty. Finalmente, o mesmo Mauro Vieira retornou sob Lula 3, com Celso Amorim se exercendo como chanceler virtual, na posição de assessor para assuntos internacionais do presidente.

Na esfera da diplomacia propriamente dita, as mudanças mais significativas ocorreram nos métodos de trabalho, tanto sob Lula 1 e 2, quanto sob a péssima gestão de Bolsonaro, pois que ambos encarnaram diplomacias presidenciais, mas de sentido exatamente oposto, com Lula e Amorim conduzindo uma grande projeção externa do Brasil, e Bolsonaro e Araújo levando o Brasil a uma situação de virtual isolamento externo. Na política externa, de maneira geral, ocorreram mudanças de ênfase ao longo do período: uma postura mais simpática à globalização e à inserção global do Brasil nos mandatos de FHC, seguida de uma orientação mais “terceiro-mundista”, mas também “mundialista”, identificada com a “diplomacia Sul-Sul”, nos anos Lula, com grande projeção externa do Brasil em várias frentes.

A ruptura ocorreu, de fato, no governo único de Bolsonaro, caracterizado pelo isolamento do Brasil em virtude de uma preferência explícita por governos autocráticos de direita, a ponto de o status de “pária internacional” ter sido admitido e assumido pelo próprio chanceler. Essa diplomacia também se caracterizou por uma subserviência inédita, não apenas aos Estados Unidos, mas explicitamente ao presidente Donald Trump, e só a ele.

Uma diferença sutil pode, no entanto, ser identificada, ao longo dessas três décadas de interação entre o Itamaraty e os centros decisores da política externa no âmbito do Executivo. Se, desde a redemocratização, o Itamaraty exibiu certa autonomia de ação na formulação e na execução da política externa, atendendo a prioridades e iniciativas dos presidentes Sarney, Collor e FHC, a partir da era Lula a interação assumiu novos contornos, pois que diplomatas já não atuavam como assessores presidenciais, tendo essa função sido assumida pelo próprio PT; depois de um breve retorno aos habituais assessores de carreira sob Michel Temer, passou-se a uma equipe de conselheiros improvisados, ignorantes na matéria, chamados pelo embaixador Rubens Ricupero de “franja lunática”, haurindo suas concepções dos grupos antiglobalistas e ultraconservadores da extrema-direita americana. Outra diferença: se, no imediato seguimento da ditadura militar, o governo e talvez a política externa viveram sob uma breve “tutela militar”, tal presença diminuiu notavelmente nos presidentes seguintes, para retornar no governo Bolsonaro, mas de maneira atabalhoada, ou virtualmente caótica.

As características do período anterior a 2019 transpareceram em iniciativas de política externa, sobretudo na direção de uma postura favorável à globalização e à regionalização, nos dois mandatos de FHC, seguida de uma diplomacia do “Sul Global”, sob Lula, com certo retorno ao padrão anterior no governo de transição de 2016 a 2018. A diplomacia manteve-se vibrante durante todos esses anos, exercendo-se ativamente em todas as frentes abertas pelos presidentes, até ser deformada pelos novos donos do Itamaraty entre 2019 e o início de 2021. O segundo chanceler de Bolsonaro, o profissional Carlos França, conduziu uma diplomacia de baixo perfil, mas sem os arroubos antiglobalistas e paranoicos do primeiro encarregado.

No momento atual, Lula 3 pretende recompor características e propostas de sua forte diplomacia presidencial dos dois primeiros mandatos, mas sua principal dificuldade reside em que os cenários regional e mundial mudaram significativamente desde os anos 2010. Na região, a fragmentação da integração é visível: uma primeira tentativa de recompor a Unasul, com o convite formulado aos dirigentes da América do Sul em maio de 2023, se revelou frustrada.

No plano global, uma outra de suas iniciativas nos mandatos anteriores, o Bric-Brics, foi devidamente retrabalhado pela China e pela Rússia no sentido de converter esse grupo em uma espécie de plataforma anti-G7 e anti-OCDE, começando por sua ampliação em 120%, ao passar de cinco a onze membros, o que diluirá a influência do Brasil no bloco. Lula ainda enfrenta difíceis escolhas no seu projeto de liderança de um indefinível “Sul Global”, derivadas das propostas de uma “nova ordem mundial”, tais como sugeridas pelas duas grandes autocracias, em seu benefício exclusivo.

No relacionamento com as grandes democracias ocidentais, finalmente, o prestígio político externo do presidente brasileiro declinou sensivelmente, não apenas por causa de seus repetidos elogios a ditaduras execráveis na região e fora dela, mas também por uma pretensa “neutralidade” objetivamente pró-Rússia, no caso da guerra de agressão desta à Ucrânia. Em outros termos, a celebrada “volta do Brasil” aos cenários mundiais já perdeu parte de um lustro que se esperava exitoso para Lula.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. A política externa de Lula já fracassou. Ele está desesperadamente tentando juntar os cacos, mas já era.

  2. Queira ou não a jumentice nacional quem aproveitou a Guerra Fria foram os governos militares que a viveram e o que fizeram? sabendo-nos país estratégico fomentou o desenvolvimento econômico feito com recursos externos que nos causaram problemas mas que sabiam a médio prazo seria pago como realmente foi, a União não tem dívida externa e a existente é do setor privado para qual temos 3x mais em reservas .. receberam um país no lixo e o entregaram 10x maior ... quem tiver dúvidas confira e verá.

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