Foto: Nelson Jr./SCO/STFA ex-presidente do STF Rosa Weber, que no último dia 22 votou por descriminalizar o aborto até 12 semanas

Ao STF cabe o papel precípuo de ampliar as liberdades das mulheres

Laicidade do Estado não é novidade no Brasil; cabe às brasileiras, baseadas na sua religião ou não, decidirem sobre a continuidade de uma gravidez
29.09.23

A pergunta da semana é se o Supremo Tribunal Federal está cumprindo sua jurisdição ao descriminalizar o aborto. Não quero dar spoiler, mas a resposta é afirmativa. O Supremo é o guardião da Constituição e a ele cumpre o papel imprescindível de revisão das normas de acordo, ou não, com a Carta Maior.

O Brasil é uma democracia em que os três Poderes da República devem atuar para ampliar as liberdades individuais. Isso quer dizer que cabe ao Supremo, mesmo que de maneira contramajoritária, a constante verificação de conformidade das normas em vigência com os parâmetros constitucionais.

Sob o ponto de vista formal, o Código Penal brasileiro é um decreto-lei redigido no auge da ditadura Vargas, em 1940. Apesar de ter sido recepcionado pela Constituição de 1988, o código é não apenas fruto do autoritarismo varguista, como também amplamente antiliberal. Assim, sob o ponto de vista da jurisdição, não há dúvida do dever de exercer constantes análises de constitucionalidade pelo STF. Ora, a democracia brasileira não chegou nem mesmo à meia-idade. É evidente que suas normas pré-constitucionais necessitam de revisão.

No que diz respeito à criminalização do aborto instituída na ditadura Vargas, é certo que a legislação penal brasileira está para além de defasada. A laicidade do Estado brasileiro não é nenhuma novidade. Logo, cabe às brasileiras — baseadas na sua religião ou não — decidirem sobre a continuidade de uma gravidez. Entretanto, mesmo quando sob o atual amparo do aborto legal, as mulheres ainda enfrentam burocracias comparáveis à tortura.

Em 2020, uma criança de 10 anos — após quatro anos de abusos sexuais cometidos pelo próprio tio — enfrentou a mais vexatória exposição nacional. Mesmo sendo uma criança, estuprada e vivendo uma gravidez de risco, ou seja, cumprindo absolutamente todos os requisitos atuais, aquela menina não teve sequer o pífio amparo estatal no resguardo de sua identidade.

Em 2022, quando a atriz Klara Castanho (com então 21 anos) foi estuprada e decidiu entregar o bebê para adoção, também foi vítima do escrutínio nacional. Aliás, não há resposta certa para as mulheres que engravidam após violência sexual. Quer interrompam a gravidez, quer entreguem à adoção, as mulheres sempre tomarão a decisão errada.

A questão do aborto é de natureza moral, íntima e personalíssima. Não há consenso científico, tampouco religioso, sobre o início da vida humana. A despeito das nossas crenças pessoais, as mulheres em gestação devem ser senhoras de seus destinos e as responsáveis pela palavra final sobre o tema.

É evidente que a vida já formada da mulher se sobrepõe à “iminente vida” de um feto ou embrião. Esta opinião é não somente minha como também da filósofa Ayn Rand. Para ela, quem não compreendia e aceitava o direito das mulheres de escolher pouco ou nada entendia sobre direitos individuais. Afinal, uma gravidez, naturalmente, põe em risco a vida da mulher, e nenhuma deveria ser obrigada a enfrentar esse risco a contragosto.

No Brasil de 2023, uma mulher não precisa de um marido, ou de seu pai ou irmão, para gozar plenamente se suas liberdades civis. Assim, ao exercer a liberdade sexual, consequentemente, há o risco da gravidez indesejada e, ao contrário do que prega o senso comum, mesmo a mulher mais responsável com seus métodos contraceptivos pode engravidar.

É importante frisar que as principais democracias e economias latino-americanas, com base social tão ou mais cristã-católica que a brasileira, já reconhecem essa liberdade civil das suas cidadãs, como Uruguai, Argentina, Colômbia, Chile e México.

Nos EUA, mesmo com a revogação da decisão da Suprema Corte que garantia o direito ao aborto de forma nacional, em 20 estados (mais a capital, Washington, e Porto Rico) não há nenhuma restrição, mesmo em estágios avançados da gravidez. Além disso, estados como a Flórida —governada pelo republicano e antiaborto Ron DeSantis — recentemente descriminalizaram o aborto em qualquer hipótese até a sexta semana de gestação. Ou seja, muito mais progressista que a atual legislação brasileira sobre o tema.

Inclusive, quem assistiu às primárias do Partido Republicano neste mês de setembro de 2023 pôde ver que, mesmo entre os conservadores americanos, o debate sobre a legalidade do aborto é acerca do período gestacional. Havia certo consenso de que a proibição ao aborto nos estágios iniciais era não apenas impraticável, como uma grave violação aos direitos individuais das mulheres.

Portanto, do ponto de vista formal, não apenas cabe ao STF como a todo e qualquer poder da República Federativa do Brasil atuar para que as liberdades de suas cidadãs sejam ampliadas — a despeito das crenças religiosas de terceiros. A criminalização da interrupção de gravidez — fruto do auge ditatorial de Getúlio Vargas — não pode mais imperar no Brasil democrático.

 

Izabela Patriota é advogada formada pela UFRN, com mestrado em Direito Constitucional na UnB e doutoranda na mesma área na Faculdade de Direito da USP. Já foi pesquisadora no Cato Institute e fellow no Mercatus Center, afiliado à George Mason University.

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  1. Discordo. Aborto não é questão de liberdade individual, mas de proteção ao individuo que ainda nao nasceu. A mulher nao pode decidir pela vida de seus filhos assim como o homem nao pode decidir pela vida da mulher.

  2. Ridículo essa colocação, se é lei ultrapassada que cobre a alteração da lei, lugar para discussão de direitos e deveres do cidadão é no legislativo , não pode estar na mão de 11 pessoas que não representam o que a sociedade quer. Posição nada técnica ou jurídica , posição mais ideológica !!!! Serviu para nada !!!!!

    1. Aborto foi criminalizado por um homem sozinho: Getulio Vargas. O congresso estava fechado e havia uma ditadura no Brasil. Se o congresso atual foi incompetente p rever a lei, cabe sim ao STF por meio de ADPF

  3. Não concordo com seu comentário. Para que favorecer o aborto se há tantos métodos para evitar a gravidez, inclusive a pílula do dia seguinte. Permitir aborto até quatro meses de gravidez é demais. O que o país precisa é de melhorar a educação.

  4. Acho fraco o argumento da "liberdade de escolha da mulher" já que a interrupção da gravidez afeta gravemente a vida da dita mulher, mas também do pai e da nova vida que se está gerando.

    1. Dados oficiais do MP mostram um total de 0 (ZERO) mulheres presas por aborto no Brasil. O descriminalizar é apenas o primeiro passo para o SUS e todo aparato governamental cometer um assassinato em escala industrial para agradar militantes.

    2. bom, nesse caso, se uma mulher cometer um aborto e isso for crime, eu acho q o pai também deve ir para a cadeia

  5. Não cabe ao Supremo ampliar as liberdades da mulher. Esses 11 indicados politicamente não tem mandato para legislar. Se a sociedade quer ampliar as hipóteses de aborto, deve pressionar os congressistas.

    1. Simboliza bem nossa ruína jurídica e Institucional quando uma doutora em direito constitucional pela USP afirma que o STF deve legislar. E para tanto usa um argumento histórico. Separar as paixões da análise técnica deveria ser o primeiro caminho para tentar se criar um país regido por leis. A não ser que as mesmas leis só sirvam quando casam com certa ideologia…

    2. getúlio vargas quando criminalizou o aborto também não tinha mandato, pois estávamos numa ditadura, e o congresso estava fechado! portanto, cabe ao STF sim!

  6. A simplificação de que a questão é exclusivamente da vontade da mulher não parece ser das melhores. O stf não é fator decisivo nessa questão.

  7. O debate sobre o aborto é um debate sobre quando começa a vida humana e não sobre os direitos da mulher. Só é possível admitir o aborto se entendermos que o feto não é uma vida humana. Ou então estaríamos a admitir o assassinato. Caberia ao STF decidir quando começá a vida humana, consequência lógica da proposta da colunista? E se o pai da criança for contra a interrupção da gravidez? Ele teria algum direito? Se não tem, ele tem que pagar pensão? A questão não é tão simples assim.

    1. O problema é que, se aborto for considerado assassinato, uma gravidez de risco ou resultante de estupro ou de abusos (caso da menina de dez anos) deve ser levada até o fim?

  8. Quanta asneira! "O Estado é laico. LOGO, cabe às brasileiras decidir, baseado na religião ou não, sobre a continuidade da gravidez". Qual a conexão lógica entre o Estado laico e o aborto? Outra: "A questão do aborto é de natureza moral, íntima e personalíssima. Não há consenso religioso ou científico sobre o início da vida humana." Então, só pode haver lei a respeito de algo sobre o qual haja "consenso" científico ou religioso? E mais: é consensual que "a moral seja personalíssima"?

    1. Segundo Patriota, a lei sobre o aborto foi elaborada no regime autoritário de Vargas. LOGO, não deve valer mais no "Brasil democrático". Isso, segundo ela, por si só já autorizaria o STF a rever a lei, independente de ela ser constitucional ou não. No fundo, o artigo não passa de uma defesa mal disfarçada do ativismo judicial do STF.

    2. No mesmo parágrafo, ela começa dizendo que a questão é "moral e personalíssima" e termina dizendo que a mulher deve decidir sobre o aborto porque o início da vida humana "não é um consenso". Desde quando o relativismo moral, implicado pela afirmação de que a questão é "moral e personalíssima", é um consenso? E ela usa o relativismo moral como premissa de um raciocínio em que advoga a favor do aborto porque, segundo ela, não há consenso sobre o início da vida humana.

  9. Confundem por ideologia e manipulação de idiotas que aborto é algo de foro íntimo da mulher a quem transformam em assassinas QUANDO NADA MAIS É que a falta de educação que elites insanas não proporcionaram como deveriam; é tão simples, não quer ter filhos? evite-os, existem mil formas de fazer isto umas interessantes que não esmagam a sexualidade da mulher MAS a nação dividida entre ignorância e ódio quer sangue e a "garantista" juíza Weber lhes dá ... é a cabidela de nenê? fartem-se Manés !!!

  10. Muito interessante ver que ter ou não filhos é uma decisão exclusiva da mulher, como defendido aqui. No papel de pai, que fui um dia, vejo que hoje sobraria para mim a função de servir ao prazer furtivo e casual de uma mulher, caso ela decida sozinha seguir com a gestação pagar a pensão e ser preso algum dia pelas mudanças da minha renda e ver as amarguras dos textões dos dias das mães e pais sobre paternidade ausente. Um problema extremamente complexo analisado somente por um ponto de vista não se torna verdade universal. Tantas certezas e supostas verdades assim empilhadas em parágrafos não resolvem nenhum problema, ainda mais um tão complexo assim.

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