Agência Senado

O STF na mira do Congresso

Os acertos e os perigos do movimento de parlamentares que procura deter o ativismo do STF
29.09.23

Nesta semana, as bancadas de direita do Congresso decidiram enquadrar o STF.

Na quarta-feira (27), o Senado aprovou em votação-relâmpago um Projeto de Lei que reconhece a existência de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas: só áreas ocupadas no momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada podem ser asseguradas aos “povos originários”. Poucas horas antes, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia concluído o julgamento que sacramentou a tese contrária. Para evitar que a nova lei seja declarada inconstitucional no futuro, os parlamentares planejam fazer tramitar uma emenda que inscreva na Carta a data de 1988 como marco temporal. Acreditam que com isso amarrarão as mãos do STF.  

Há outras frentes de ataque. Na mesma quarta-feira em que a lei sobre o marco temporal foi votada, a Comissão de Família da Câmara dos Deputados começou a debater um projeto que pretende proibir a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O relatório do deputado Pastor Eurico (PL-PE) invalidaria a decisão de 2011 do STF que autorizou esse tipo de união.  

Um dia antes, um grupo de senadores e deputados já havia organizado uma entrevista coletiva em protesto contra aquilo que chamou de invasão de competências do Legislativo pelo Supremo Tribunal. Além do processo sobre a demarcação de terras indígenas, eles denunciaram o julgamento que permitiu aos sindicatos a cobrança de uma “contribuição” inclusive de trabalhadores que não sejam filiados; o que estabeleceu uma diferença entre usuário e traficante de drogas com base na quantidade de droga apreendida com o indivíduo; e o que pode autorizar o aborto em situações diferentes daquelas já previstas na legislação (estupro, perigo de vida para a mãe e feto anencéfalo).  Os parlamentares prometeram votar uma lei para invalidar o entendimento do Supremo sobre drogas e instituir um plebiscito para que os eleitores deliberem sobre aborto. 

A medida mais drástica arquitetada pelas frentes parlamentares de evangélicos, ruralistas e defensores das armas é uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permitiria sustar decisões do Supremo por meio de decretos legislativos. Ela foi protocolada na Câmara dos Deputados nesta quinta-feira (28), com 175 assinaturas – quatro a mais do que o necessário.  

Nem todas essas iniciativas devem prosperar. A ideia de proibir a união gay deve ser engavetada – até um deputado conservador como o Pastor Sargento Isidório achou a proposta ruim. Também é duvidoso que as principais lideranças do Congresso estejam mesmo dispostas a disparar uma bomba atômica como a PEC antiativismo – aquela que sustaria as decisões do STF. Eles sabem que a corte tem munição para revidar. Afinal, não faltam denúncias e inquéritos abertos contra deputados e senadores. Talvez o objetivo seja limitado: forçar o Supremo a recuar nos temas do marco temporal e das drogas, e se abster no caso do aborto. Mas não se pode descartar a hipótese de que os parlamentares queiram mesmo encurralar o tribunal. Como mostrou a última reportagem de capa de Crusoé, eles já fizeram a balança pender a seu favor na disputa de poder com o Executivo.  

Não se pode dizer que a movimentação do Congresso seja inesperada ou não tenha razão de ser. Faz tempo que o STF vem gerindo mal sua reputação e minando sua própria legitimidade. A corte abusou por anos das decisões monocráticas e dos pedidos de vista que não tinham outra função exceto a de paralisar julgamentos que deixavam insatisfeito este ou aquele ministro (e sabe-se lá quais outros atores, próximos o bastante para soprar sugestões nos ouvidos dos togados). A corte fez pouco de precedentes e da previsibilidade, tornando-se muitas vezes um fator de instabilidade no país. A corte não se limitou a controlar a constitucionalidade das leis editadas pelo Congresso, mas usou sem parcimônia ferramentas que lhe permitem, na prática, criar leis para “concretizar direitos”. Sem ignorar o fato de que os ministros falam demais e passaram a ser vistos como agentes políticos poderosos, em vez de magistrados imparciais dedicados a guardar a Constituição. 

Tudo isso agora se volta contra o STF. 

 Mas esse novo campo de batalha entre os poderes é bastante perigoso. Do solo remexido pode nascer algo estranho – nem digo uma jabuticaba, que supostamente só existe no Brasil, mas uma planta carnívora de fato desconhecida em outros lugares. Deixando as metáforas de lado, o risco é que a tentativa de conter o STF vá longe demais, acabe castrando a corte e afastando o Brasil – mais ainda – dos modelos democráticos que deveriam servir de inspiração ao país. 

A ideia de que um punhado de cidadãos não eleitos está autorizado a derrubar leis aprovadas pelo Congresso ou reconhecer direitos que não estão assegurados explicitamente em nenhum texto não nasceu nem hoje, nem no Brasil. Já inquietava os americanos do século XVIII, que mesmo assim a inscreveram na sua Constituição, dando origem àquele célebre arranjo dos “pesos e contrapesos”. Dos Estados Unidos, o modelo se espalhou pelo mundo e hoje é adotado em inúmeros países. Entre as razões para que se atribua um poder “contramajoritário” (para usar um jargão que está caindo em domínio público) às cortes constitucionais estão os fatos de que políticos às vezes legislam em favor deles mesmos – alguém aí falou em PEC da Anistia? Em orçamento secreto? – e de que leis aplaudidas por maiorias podem oprimir minorias, às vezes até exterminá-las.  

Há países avançados e democráticos que fogem ao modelo americano, como a Holanda, onde as cortes não têm o poder de analisar a constitucionalidade das leis aprovadas pelo parlamento, e o Canadá, que dá ao Legislativo a última palavra na interpretação dos direitos constitucionais. Mas esses são arranjos institucionais que foram pensados com cuidado ou amadureceram ao longo do tempo. Não são soluções apressadas, desenhadas por parlamentares de poucos escrúpulos, num Congresso que só conta com a confiança plena de 16% da população (segundo um recente Datafolha). É verdade que o STF anda avançando o sinal. Isso não significa que o poder de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição deva ser transferido, da noite para o dia, para um Congresso que não hesita em legislar em causa própria – alguém aí falou mais uma vez em PEC da Anistia?  

A movimentação de deputados e senadores nesta semana manda um recado importante ao Supremo. Os ministros deveriam engolir em seco e refletir sobre o caso. Deveriam refletir, principalmente, sobre as condições da sua própria legitimidade. O juiz da Suprema Corte americana Lewis Powell Jr. solucionou a charada várias décadas atrás, ao dizer que cabe aos próprios ministros serem prudentes e garantir “a coexistência pacífica do seu poder contramajoritário de revisão das leis com os princípios democráticos sobre os quais o governo se assenta”.  

 

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