Ricardo Stuckert/PRA Cúpula do BRICS em 2023: democracias liberais não entram

Oposição democrática na Nova Guerra Fria

É preciso abandonar para sempre o esquema interpretativo esquerda x direita para consolidar um discurso próprio e aglutinar novas forças políticas
29.09.23

A terceira onda de autocratização que nos assola e a Nova Guerra Fria que já começou é uma campanha de extermínio das democracias liberais. Vejam que as grandes autocracias do planeta (como China e Rússia) se alinham a qualquer regime (dito de esquerda ou de direita, tanto faz), desde que não seja uma democracia liberal.

Lula está inserindo o Brasil nesse eixo autocrático, muito mais poderoso do que a URSS na primeira grande guerra fria (1962-1988) e do que o eixo nazifascista Alemanha-Itália-Japão da segunda guerra. Querer não ver isso não muda a realidade. Falar que a posição do governo Lula é ambígua porque voltou ao século XX para trocar figurinhas sindicais com Biden não muda a realidade. Não há nenhuma ambiguidade aqui. Há um alinhamento, sob o pretexto do BRICS  e do Sul Global – que não abarcam nenhuma democracia liberal para, supostamente, se defender do imperialismo norte-americano e do neocolonialismo eurocrata.

No BRICS (ou no Sul Global o que é a mesmíssima coisa) podem entrar países com qualquer regime. Menos os que vigem nos seguintes países: Alemanha, Australia, Austria, Barbados, Belgica, Canadá, Chile, Chipre, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Holanda Irlanda Islândia Israel Itália Japão Letônia Luxemburgo Maurício Noruega Nova Zelândia, Reino Unido, República Checa, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan, Uruguai. Eis a black list dos autocratas. Deu para entender?

O PT se alinha a qualquer país que não seja uma democracia liberal ou não seja um regime eleitoral não parasitado por populismos (ou seja, que tenha chances de entrar em transição para uma democracia liberal). Ao que parece, esse é o critério básico. Mas é bom explicar com mais detalhes.

Na minha classificação atual de regimes políticos existem dois tipos básicos:

I) regimes eleitorais e

II) regimes não-eleitorais.

E cinco subtipos:

1) democracias propriamente ditas ou democracias liberais (Suíça, Suécia, Nova Zelândia, Irlanda)

2) regimes eleitorais com chances de transição democratizante (Maurício, Croácia, Malta, Panamá)

3) regimes eleitorais em risco de transição autocratizante (Bolívia, Equador, Peru, Polônia)

4) regimes eleitorais autoritários (Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia)

5) regimes não-eleitorais autoritários (Cuba, China, Coreia do Norte, Arábia Saudita)

Dei quatro exemplos de cada tipo. Vejam que não usei para nada a classificação esquerda x direita porque existem forças políticas de esquerda ou de direita nos governos de cada um dos tipos. Na verdade, a Nova Guerra Fria desabilitou a distinção esquerda x direita como esquema explicativo, mas continua turbinando-a como gancho ideológico para manter a polarização (quer dizer, a política como continuação da guerra por outros meios).

Os regimes eleitorais sob risco de transição autocratizante são, invariavelmente, os parasitados por populismos (seja pelo neopopulismo, seja pelo populismo-autoritário ou nacional-populismo).

O mesmo que vale para regimes, mutatis mutandis, serve também para as oposições.

Como se sabe, governo existe em qualquer regime. Oposição democrática só nas democracias.

Nem toda oposição é democrática. Uma oposição democrática, em primeiro lugar, precisa ser uma oposição eleitoral.

Como assim? Existem oposições não-eleitorais? Existem, sim, em democracias e em autocracias. A oposição à ditadura militar brasileira, por exemplo, dividia-se em uma oposição eleitoral e uma oposição não-eleitoral (revolucionária) que propunha a insurreição popular, o foco revolucionário ou a guerra popular prolongada. Essa segunda oposição, conquanto lutasse contra uma ditadura, não era democrática (em boa parte queria instalar uma outra ditadura, do proletariado, no lugar da ditadura burguesa).

Mais dois exemplos. A oposição sandinista ao governo Somoza era uma oposição não-eleitoral. A oposição castrista ao governo Batista em Cuba era uma oposição não-eleitoral. Essas oposições revolucionárias, conquanto socialmente justas por lutarem contra governos tirânicos ou corruptos, não eram politicamente democráticas. E tanto é assim que, depois de serem vitoriosas, instalaram ditaduras.

Todavia, não basta a uma oposição ser eleitoral para ser democrática. É necessário também que, além de querer adotar a via eleitoral, ela não seja populista (no sentido que esse conceito adquiriu no século XXI, quer dizer, nem neopopulista, dita de esquerda, nem populista-autoritária, dita de direita ou extrema-direita). Populistas (de qualquer matiz) não são liberais, são majoritaristas e antipluralistas.

Ser liberal, aqui, não tem nada a ver com seguir alguma doutrina do liberalismo-econômico ou ser neoliberal. Liberal, no sentido político do termo, significa tomar a liberdade (e não a ordem) como sentido da política (nem que seja a ordem mais justa imaginável do universo). Ademais, liberal, no sentido político do termo, significa ter uma visão negativa do poder político, que se refere não à capacidade do governo de se impor à sociedade e sim à possibilidade da sociedade de controlar o governo.

Adiante. Uma oposição eleitoral, mas não-liberal (no sentido acima), quer dizer, populista (majoritarista e antipluralista), não converte necessariamente um regime eleitoral em uma autocracia eleitoral (muito menos em uma autocracia não-eleitoral), mas pode fazê-lo. Uma oposição neopopulista pode converter o regime em uma autocracia eleitoral, como aconteceu, por exemplo, na Venezuela e na Nicarágua. Uma oposição populista-autoritária pode também converter o regime em uma autocracia eleitoral, como aconteceu, por exemplo, na Rússia, na Turquia, na Hungria ou na Índia.

Mas nem sempre quando forças populistas parasitam regimes eleitorais elas conseguem (ou pretendem) transformar esses regimes em autocracias. Em geral paralisam o processo de democratização, mantendo esses regimes como regimes apenas eleitorais, dificultando ou impedindo que eles se transformem em democracia liberais, como aconteceu na Bolívia, no Equador, no Paraguai e em El Salvador, ou está acontecendo no México, na Argentina e no Brasil. Para ficar na América Latina, isso só não aconteceu em três países, que continuam sendo democracias liberais (Costa Rica, Chile e Uruguai).

Reflitam, por favor, sobre o que vou dizer agora e que, à primeira vista, pode não ser facilmente entendido. Uma oposição democrática liberal (quer dizer, não-populista), em qualquer país do mundo (inclusive no Brasil, onde praticamente inexiste hoje), neste ambiente da Nova Guerra Fria em que vivemos, só tem uma chance de consolidar um discurso próprio e aglutinar novas forças políticas: abandonar para sempre o esquema interpretativo esquerda x direita.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O REGIME PETISTA (COMUNISTA) NUNCA SE ALINHOU COM QUALQUER DEMOCRACIA. ESTÁ NA CARA E SÓ CEGO OU BHURRO NÃO VÊ.

  2. Há tempo não lia um texto tão preciso, análise perfeita do que será o porvir da Ilha de Macunaíma com seu líder insano e ignorante nos levando ao Estado Pleno Totalitário previsto por Aldous Huxley e George Orwell anos atrás a duramente se confirmar; não por acaso o sinistro Tófoli no exterior proclamar alto e em som afirmar ser o Poder Moderador na verdade Poder Ditador que JÁ É DE FATO com o comunazismo esmagando a nação de Manés rumando à guilhotina ... morremos com a dignidade de Danton?

  3. Perfeito, Augusto. Nosso progressismo hegemonista (PT e aliados) é herdeiro legítimo da tradição conservadora e antiliberal do "autoritarismo instrumental" (de Oliveira Viana). Isso mostra como o antiliberalismo dissolve fronteiras ideológicas. Gostaria muito que você tratasse desses traços tipicamente conservadores e regressivos presentes no progressismo hegemonista (particularmente brasileiro). Pode ser aqui ou no seu site. Vejo certo complexo de Luís XIV em muitos de nossos progressistas.

Mais notícias
Assine agora
TOPO