A ministra Anielle Franco na final da Copa do Brasil 2023Anielle Franco na final da Copa do Brasil - Foto: Reprodução/Instagram

A pobreza dos perdigotos petistas

Tuítes de dois ministros mostram que o debate público na “democracia restaurada” continua afundando no pântano das guerras ideológicas
29.09.23

Da discussão não nasce a luz, nascem os perdigotos. Houve tempo em que eu discordava dessa boutade de Otto Lara Resende. Só a discussão livre e ampla, acreditava eu, permite que uma ideia seja decantada e refinada, para que no confronto com ideias opostas chegue-se a soluções de compromisso e consensos que são a base da democracia liberal. Esfera pública, livre mercado de ideias etc. Ainda acho que as coisas deveriam se dar assim, idealmente. Na prática, porém, esse modelo utópico do debate público facilmente degenera na cacofonia produzida por disputas renhidas entre um punhado de intransigências. Fazer o quê? Nossa triste raça de primatas pelados é assim mesmo, expansiva, beligerante, ruidosa. No fim de todas as contas, a bagunça em que sempre nos metemos ainda me parece preferível à ordem unida que os governos ou juízes do turno desejam impor pela censura (ou pela “regulação”, segundo o eufemismo corrente).

Se hoje vejo com mais simpatia a tirada do escritor mineiro, é por cansaço. Perdi o gosto pela discussão, que já foi um vício meu. Os artigos de opinião que publico semanalmente nesta Crusoé e eventualmente em outros veículos ainda são capazes, espero, de suscitar e inflamar discussões. Concluído o texto, porém, não faço tanta questão de seguir no debate — pelo menos não no modelo em esse debate se desenrola na era de Zuckerberg: a treta em rede social.

Por razões profissionais, eu talvez devesse buscar o tal do “engajamento” na rede que já se chamou Twitter. Mas não tenho paciência para tanto. Meu perfil na casa de Musk é quase secreto, sem seguidores. Observo em silêncio o que acontece por lá, e me basta. Agora, por exemplo, estão fervilhando comentários sobre a ministra da Igualdade Racial, que fez um vídeo divulgando seu passeio a São Paulo, em avião da FAB, para cumprir um compromisso na final da Copa do Brasil. O combate ao racismo no esporte era a pauta do dia, e por isso aquele ministro cujo nome torna ainda mais ridículo o nosso ridículo cotidiano também desembarcou em São Paulo graças aos bons serviços da aeronáutica.

No caso da ministra da Igualdade Racial, a polêmica, deusa-mãe dos perdigotos, não se limita ao custo imposto ao erário. Pois ela viajou acompanhada de uma assessora que publicou comentários em sua rede social sobre a torcida do São Paulo — comentários que são, veja só, racistas! (“Não existe racismo reverso”, rebate o militante governista. E eu concordo: existe racismo, apenas. Que bom que esgotamos pelo menos essa dispersão aérea de gotículas infeciosas.)

A assessora foi demitida, o que me parece justo. Ainda sobrou matéria para debate? Bem, no Twitter — é sempre no Twitter —, a ministra Anielle Franco sugere que aqueles que a criticam por fretar um avião da FAB, muito mais caro que um voo comercial, cometem “violência política de Gênero e Raça”. A crítica a uma ministra negra será sempre machista e racista: essa conversa, de tão batida, já dispensa discussão.

Como sou o chato que repara no abuso de certas palavras e conceitos, o que mais me irritou no tuíte da ministra foi a afirmação de que o acordo sobre o combate ao racismo no esporte que ela firmou no Morumbi é “histórico”. Ao que parece, tudo que este governo faz deixará marcas definitivas na História. Se bem que o desgaste do adjetivo precede a eleição — histórica! — de Lula: os manifestos em defesa da democracia que acadêmicos, artistas e intelectuais assinavam sempre que se ouvia uma eructação golpista do presidente anterior eram exaltados pelos signatários e pela imprensa como documentos históricos. Se os abaixo-assinados contra Jair Bolsonaro eram históricos, e se Lula 3 também é histórico por “trazer o Brasil de volta” depois da catástrofe bolsonarista, só nos resta concluir que histórica de verdade foi a eleição de Bolsonaro. Passados nove meses desde seu fim, o governo do capitão ainda é o desaguadouro pútrido de todos os perdigotos dissipados na conversa política brasileira — o que dá uma boa medida da mediocridade dessa conversa.   

Por falar em história e em Twitter, o que dizer do tuíte histórico em que o ministro dos Direitos Humanos — que, vale registrar, tomou um voo comum para comparecer ao evento antirracista em São Paulo — denunciou o casamento espúrio entre liberalismo e escravidão? Para demonstrar que a escravidão moderna foi uma invenção dos liberais, Silvio de Almeida pinçou citações racistas de Kant e Hume (e também de Hegel, esse estranho liberal que influenciou Marx e que acreditava no Estado como a suprema realização dialética da história). 

Em respostas e comentários, alguns tuiteiros observaram o flagrante anacronismo da afirmação de Almeida: o tráfico transatlântico de escravos começou pelo menos um século antes do liberalismo tomar corpo, seja como escola de pensamento ou sistema político-econômico (distinção que não parece importar ao ministro). Outros lembraram que o abolicionismo foi um movimento conduzido principalmente por liberais. Os dois reparos acertam na mosca, mas o que isso importa no clima político corrente? A correção factual é dispensável no campinho lamacento da guerra ideológica onde o ministro dos Direitos Humanos tenta lançar suas bombinhas. Sob a aparência enganosa de uma análise histórica, o tuíte de Almeida cumpre a função de estampar o R de racista na testa dos inimigos do governo. Se o liberalismo é intrinsecamente escravista, o neoliberal Roberto Campos Neto bem pode ser um genocida, como a presidente do PT já proclamou no Twitter.

O debate histórico petista não é muito diverso do terraplanismo bolsonarista a que Almeida aludiu no mesmo fio do Twitter: um intercâmbio de ideias prontas entre militantes interessados apenas na reafirmação de certezas estreitas. 

Teria algo mais a dizer sobre o tema, mas vou parar aqui. Minha boca ficou seca. 

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  1. Tenho a impressão de que falta qualificação, preparo técnico, moral e intelectual a boa parcela dos servidores ocupantes dos mais elevados cargos de nossa republica. Praticamente dinheiro jogado fora!

  2. Acho ótimo ver essa Anielle colaborando para a falência do governo do Ditador Lula - alma pura que dá cestas básicas aos pobres e quer aproveitar o lucro dos desvios para comprar um aviãozinho com cama de casal. Avião da FAB é para pobres negros flamenguistas. (espero não ser presa pelo que escrevi).

  3. Tanto leriado melhor esclarecer o distinto canelau ... perdigoto citado e útil nisto poderia ser perdizes MAS a saliva putrefata que o articulista tão bem definiu com a nossa "intelectualidade" falando, e enganando, a si mesmos em palavras tolas e vãs à espera do fatal cutelo que Brucutu, Dino e tentáculos nos armam e fatalmente esmagarão toda uma nação submissa ... aí choro cantando Vandré "vem, vamos embora ..." e que venha a morte sob a fílosofia de Comte e poemas patrióticos de Olavo Bilac.

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