DivulgaçãoSonia Braga no filme Aquarius: antigos moradores podem vender mais caro seus imóveis quando área é valorizada

Por que devemos defender a gentrificação

O oposto desse fenômeno seria a deterioração ou empobrecimento de determinada área
08.09.23

É certo que fomos de certa forma influenciados negativamente por Sônia Braga no filme Aquarius sobre a ganância imobiliária. A bela atriz, que personifica Clara no filme, vive em um belo prédio vintage em frente à orla do Recife. Ora, antes de ser um pequeno edifício gracioso, ali deveria haver uma modesta casa, antes dela um terreno, antes dele, vegetação nativa e assim por diante. Certamente isso não faz dos novos adquirentes vilões, nem tampouco dos primitivos vítimas — desde que tudo tenha ocorrido dentro das regras de aquisição de propriedade.

É exatamente sobre esse fenômeno de mudança constante, com novos proprietários, novas propriedades e novos ares que se trata a gentrificação. O filme de Kleber Mendonça traz certos abusos pelas partes que tentavam negociar a nova titularidade do imóvel, mas esse certamente não é o ponto central que define o movimento gentrificador.

Em abril de 2023 ouvi a seguinte frase do brilhante economista urbano Alain Bertaud em São Paulo: “Se uma cidade gentrificou, é porque alcançou o sucesso urbano“. Poucos sabem o contexto e o sentido da frase mais que acertada de Bertaud.

Há algum tempo, o termo gentrificação vem ganhando espaço no debate público quando o assunto é política urbana. A palavra tem origem na língua inglesa —  gentrification — e pode ser traduzida como o ato de enobrecer determinada área urbana. Ou seja, a gentrificação é o processo de transformação de bairros urbanos anteriormente deteriorados ou de baixa renda em áreas mais atraentes e valorizadas, geralmente acompanhado pelo deslocamento de moradores de baixa renda em virtude do aumento dos custos de vida.

O termo foi cunhado pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass em 1964, em um artigo chamado “London: Aspects of Change“. Ela usou o termo gentrification para descrever a transformação que estava ocorrendo em alguns bairros de Londres. Habitantes com maior poder aquisitivo estavam se mudando para áreas urbanas centrais que anteriormente eram habitadas por moradores com menor poder aquisitivo. Essa migração estava alterando a composição social dos bairros e muitas vezes levando ao deslocamento dos moradores originais.

Por mais que seja simples o raciocínio de imaginar que a população de determinada área está sendo expulsa pelo aumento do custo de vida, é preciso enxergar a questão de maneira ampla: o oposto do fenômeno de gentrificação seria a deterioração ou empobrecimento de determinada área.

Se a população cresce e não há mais oferta habitacional, necessariamente os preços sobem — mesmo sem novas construções. Ora, essa é uma simples resposta de um princípio basilar econômico da oferta e demanda. Se os preços de determinada área sobem de forma natural com o crescimento populacional, é certo que o poder de barganha dos antigos moradores é maior.

Como também disse Bertaud, existem mecanismos ocultos que fazem com que as cidades funcionem. Enxergar a equação de mercado, compra e venda, como um jogo de soma zero é errado tanto em economia quanto no debate urbanístico. Se há uma relação entre antigo morador vendendo uma propriedade, com quem adquire o imóvel comprando-o, desde que seja de forma espontânea e consensual, todos saem ganhando.

Relações de compra e venda ou de renovação imobiliária, desde que seguindo as regras do jogo, são saudáveis e beneficiam todos os envolvidos. Nenhum planejamento urbano pode impedir essa relação tão basilar e cara aos proprietários de imóveis que é a de permanecer ou sair de seus ambientes. Quando lhes é desfavorável permanecer ou quando lhes é favorável sair, que assim o seja.

Em geral, o termo gentrificação é usado pejorativamente para exemplificar o processo de verticalização que vem acontecendo em bairros como Vila Madalena e Perdizes, em São Paulo. Em uma mesma vila, é possível coexistir residências com apenas uma família de no máximo cinco pessoas e edifícios com dezenas de famílias.

Aliás, vale salientar que, como resultado da elevação natural dos preços com o aumento da população, caso não haja novas construções, a população com menor poder aquisitivo se afasta cada vez mais dos centros urbanos. Ou seja, menos ofertas habitacionais para manter residências com pequenos núcleos familiares desprivilegia a população carente.

Raul Juste Lores, autor do livro São Paulo nas Alturas, acertadamente detalha o movimento de verticalização em São Paulo como benéfico em muitos aspectos. Alguns dos pontos que ele pode destacar incluem: otimização do espaço, mobilidade urbana, preservação ambiental, integração social, infraestrutura compartilhada, economia de energia, iconicidade e identidade.

O crescimento urbano, ou desenvolvimento para quem preferir, só é possível se as cidades puderem fluir de maneira plena. É um risco, além de um grande erro, desconsiderar as ações espontâneas dos mercados quando se planejam cidades. É preciso garantir o pleno direito de ir e vir, bem como o de compra e venda livre entre moradores de quaisquer que sejam os bairros ou cidades.

 

Izabela Patriota é advogada formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com mestrado em Direito Constitucional na  Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo (USP). Iza é diretora de Relações Internacionais no LOLA Brasil

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  1. Você não leva em conta que geralmente os proprietários são forçados a vender ou sair pelas grandes construtoras, e que no exterior esse problema se agrava porque geralmente envolve aluguéis ou hipotecas. É isso que dá o tom pejorativo da palavra.

  2. Espero que dê certo nas regiões centrais do Rio, porque é muito triste e cansativo ver o miolo da cidade degradado, bairros distantes crescendo e tudo ficando mais longe.

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