Flávio DinoFlávio Dino: prestidigitação política - Foto: Isaac Amorim/MJSP

O Toddynho e o disco voador

Uma foto do advogado de Bolsonaro e uma tirada duvidosa de um ministro de Lula resumem a miséria material e espiritual do Brasil 
07.09.23

Dois objetos, um real e outro imaginário, comportam o Brasil inteiro: o Toddynho de Wassef e o disco voador de Dino. Os inquéritos inesgotáveis do STF e as CPIs circenses do Congresso; o silêncio de Bolsonaro sobre as jóias e o falatório de Lula sobre o STF; as enchentes no Sul e os ianomâmis famélicos do Norte; os cavalos de Juscelino Filho e a capivara Filó; a farofa de GKay e os pais de Larissa Manoela; a Horda Canarinha e o MST; Michelle e Janja – tudo está contido na prosaica caixinha de achocolatado e na fantasiosa nave alienígena.

Disco voador e Toddynho ganharam noticiário e redes no final do mês passado. Só hoje, porém, me deu o estalo da relação íntima entre os dois itens (foi uma daquelas epifanias que só surgem quando se aproxima o prazo final para a entrega de um texto). Esse conjunto díspar forma o tropo definitivo da vida pública nacional, ao mesmo tempo metáfora de nossa miséria e metonímia de nossa mendacidade. E ainda traz a vantagem de ser uma dupla ecumênica: um quitute bolsonarista e uma evasiva petista.

Flávio Dino, ministro da Justiça, falou no tal disco voador quando tentava explicar por que não entregou à CPI dos atos golpistas todas as imagens registradas pelas câmeras da sede de seu ministério no 8 de janeiro. Se entendi corretamente, as imagens foram apagadas por força de um contrato com uma empresa privada e além do mais o ministro nunca teve o dever legal de entregá-las para um inquérito público. Não tenho, não devo, disse Dino – e em seguida tomou carona com os extraterrestres: “Essas imagens não vão mudar a realidade dos fatos. Não vai aparecer um disco voador, não vão aparecer infiltrados e não vai aparecer a prova desse terraplanismo que inventaram para ocultar a responsabilidade dos criminosos”.

O disco voador deveria funcionar como um reductio ad absurdum, o argumento que desmonta uma afirmação levando-a até suas consequências mais malucas. O problema é que Dino valeu-se desse expediente para postular ele mesmo um absurdo lógico: ele garantiu que não havia nada de importante em imagens que ninguém jamais viu…

Eu mesmo nunca acreditei na tese dos infiltrados de esquerda no quebra-quebra em Brasília. A Horda Canarinha talvez não soubesse o que estava fazendo, mas sabia muito bem o que estava desejando (ou delirando). Os farrapos de desculpa do ministro tiveram, no entanto, o efeito de tornar a tal “infiltração” um tanto mais plausível. Na escala de plausibilidade, um provocador no meio da massa ainda pontua mais alto do que invasores intergaláticos.

Invocado para convencer os incautos de que nada se perdeu com a perda das imagens do ministério da Justiça, o disco voador representa bem a arte da prestidigitação política na qual Lula, o PT e seus aliados próximos sempre foram mestres. Na contramão daquela passagem famosa do Manifesto Comunista, a propaganda petista transforma vento em matéria sólida: projeções etéreas sobre o aumento de arrecadação adquirem o peso de uma âncora, um golpe de Estado materializa-se na decisão de um tribunal federal que se limitou a arquivar um processo de improbidade, a salvação da democracia desce dos céus da ficção pelas mãos de um admirador de Putin e Maduro.

Wassef, advogado intermitente da família Bolsonaro, não quis conferir significados tão profundos à caixa de Toddynho que esvaziou em uma lanchonete paulista. Ele apenas teve sede e fome na saída de um depoimento à Polícia Federal sobre seu envolvimento no cada vez mais enrolado caso das joias sauditas que o ex-presidente quis (e ao que parece, ainda quer) incorporar a seu acervo pessoal. Entrou na lanchonete para pedir um pão de queijo e o achocolatado. Foi fotografado no meio do lanche.

O pão de queijo não aparece na foto, que mostra o advogado de perfil, apoiado no balcão, o cabelo escorrido em direção à nuca, a caixa de Toddy na mão direita, com o canudo no canto da boca. Ao fundo, se vê uma dessas imagens da São Paulo antiga comuns nas paredes de restaurantes, bares e padarias da cidade – expressão, talvez, da nostalgia por tempos que se supõem simples e honestos.

Há uma incongruência monstruosa entre a figura crepuscular de Wassef e a singela caixinha de leite com chocolate adoçado. O homem que abrigou Fabrício Queiroz no seu sítio em Atibaia e que foi animar os insurrectos na porta de um quartel não deveria tomar leitinho. Ou seria o Toddynho, bebida infantil, uma sugestão de inocência? Na breve entrevista que deu ao sair da PF, o advogado se disse perseguido por jornalistas que se devotariam a “assassinar a reputação de inocentes”.

Inocentes: o plural decerto abriga Bolsonaro, seus colaboradores e filhos (Wassef foi o defensor de Flávio, o Zero Um, no caso das rachadinhas). E a foto tem aquela atmosfera de espontaneidade que vimos o próprio Bolsonaro encenar no café da manhã com pão e leite condensado, no miojo no quarto de hotel em Tóquio e na calça toda suja da farofa que acompanhava o frango em uma feira de rua.

Nesses itens mesquinhos, está todo o bolsonarismo. Tosco, mas eficiente. Apontar para uma urna eletrônico e dizer “tem fraude aí” é comunicação direta. Por contraste, torcer o sentido de uma decisão do Tribunal Federal de Brasília para reafirmar que Dilma Rousseff sofreu um golpe só convence quem já está convencido (em geral, gente com educação formal suficiente para saber que isso é mentira).

O Brasil cabe todo em uma caixa de leite processado e em um clichê da ficção científica. Não nos falta apenas verdade e decência: também nos falta imaginação.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Se Flávio Dino afirma q não havia + nada nas gravações filmadas, automaticamente a "opinião pública" passa a pensar o contrário e tem motivo p isso! Da mesma forma, afirmações de Wassef, sem comprovação, levam a "opinião pública" a julgar o contrário. O problema brasileiro é q nossa "opinião pública" é muito pequena face à quantidade de canalhas e bandidos empoleirados nos 3 poderes. Vejam artigo de Bolívar Lamounier no O ESP de 09/9/23, pg A4, definição de Hans Speier assim, urge aumentá-la!

  2. Em nosso querido Brasil a verdade e a mentira, a fantasia e a realidade se misturam, e o nosso povo vai surfando nas ondas dai criadas, vivendo na ilusão e ao mesmo tempo sofrendo com a miséria, a injustiça, a desigualdade e a fome.

  3. Chego à conclusão que se eu fosse uma fiel telespectadora da Globo, CNN ou Band minha vida seria mais feliz. Mas teimo em acreditar em tudo que é dito aqui no Antagonista. Por isso sofro e mantenho a fé de que esse bando de falsos, antiéticos, ditadores, populistas etc. ainda sofrerá no fogo do inferno. Por enquanto sigo acreditando em discos voadores, com o desejo de ser abduzida e não voltar ao Brasil.

  4. O Brasil é irracional, disfuncional e liderado por um misto de imbecis, pilantras e oportunistas em geral. Ninguém fala em boa gestão ou reduzir custos!

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