Foto: Quintinense/Wikimedia CommonsEstátua de Carlos Gomes (1836-1896) no centro do Rio; compositor teve seus estudos pagos por dom Pedro 2º

Guerra cultural para quê?

Na verdade, expressão designa guerra de propaganda pura e simples; arte e cultura passam ao largo, apesar de serem usadas como instrumento
04.08.23

Setores da direita têm cobrado o governador Tarcísio de Freitas para que atue na chamada guerra cultural. Ricardo Salles, ex-ministro de Jair Bolsonaro, cobrou especificamente isso do governador: “É muito mais fácil fazer estrada que combater a esquerda. Os ministérios ideológicos, Justiça, Educação, Cultura. É ali que a briga ideológica acontece”, afirmou Salles em reunião do PL no começo do mês de julho.

O termo “guerra cultural” foi amplamente difundido nos Estados Unidos na década de 1990, a partir do livro de James Davison Hunter. No Brasil, ele se difundiu especialmente a partir de junho de 2013, em termos muito próximos da guerra cultural norte-americana descrita por Hunter — em opiniões que se dividem em duas polaridades distintas, em temas como aborto, legislação sobre armas, uso de drogas, homossexualidade etc.

Durante o governo Bolsonaro, a guerra cultural esteve em pauta diariamente, seja na atuação do presidente, seja na dos ministros ou da militância, tendo como palco especialmente as redes sociais.

Primeiro de tudo, é preciso que se diga: guerra cultural não tem nada de propriamente cultural. Na prática, guerra cultural é guerra de propaganda pura e simples. Arte e cultura passam ao largo, apesar de serem usadas como instrumento.

Assim, a guerra cultural bolsonarista não resultou em nenhuma obra cultural ou artística, mesmo dispondo do orçamento do governo federal, da gestão das leis de incentivo e tendo ao seu lado uma boa parcela do empresariado. Só com este último, o governo poderia ter incentivado uma grande quantidade de obras musicais, cinematográficas, teatrais e até arquitetônicas — mas não o fez. Com isso, poderia ter feito a diferença contra a hegemonia da esquerda na cultura.

Preferiu os embates em rede social. O problema é que esses embates, apesar de terem no curto prazo o efeito de agregar a militância, constantemente tem o efeito oposto no âmbito da cultura. Por exemplo: o boicote ao filme Marighella feito por uma parcela da direita só favoreceu o filme.

Não é à toa que a Igreja Católica parou (já há décadas) de proibir filmes — porque isso os promovia.

A longo prazo, a guerra cultural provoca um esgotamento dos envolvidos. É que reclamar adianta pouco ou nada. O escândalo promoveu muitos artistas e muitas obras, e é até hoje um mecanismo usado pelo marketing.

A única forma possível de atuação na cultura — mesmo que tenha por objetivo um efeito político — é através da ação positiva, de incentivo, criação e resgate de obras de valor. Os efeitos podem não ser imediatos, mas são duradouros.

Temos bons exemplos na nossa história: o incentivo às artes que aconteceu no Segundo Reinado — inclusive com Pedro 2º pagando do próprio bolso os estudos do compositor Carlos Gomes na Europa —, com o claro objetivo da procura da identidade nacional, dá frutos até hoje.

Os efeitos do Movimento Regionalista — encabeçado por Gilberto Freyre, então um jovem de 26 anos — repercutiram formando toda uma identidade regional nordestina que foi a base da literatura de grandes escritores, tais como José Lins do Rego, Ariano Suassuna etc. Para a escultura de Aberlado da Hora e Francisco Brennand. Para a Orquestra Armorial e a música de Guerra-Peixe e Clóvis Pereira. O Auto da Compadecida, um dos filmes mais queridos do cinema nacional, é talvez a obra mais conhecida desse movimento.

Também Gustavo Capanema, ministro de Getúlio Vargas, deixou um legado na cultura que transcendeu gerações e mesmo a ideologia do governo do qual participou. Capanema tinha sua constelação de gênios — Villa-Lobos, Portinari, Drummond —, que formou a mais brilhante geração de artistas da história do Brasil.

Até os governos militares tiveram uma importante atuação na cultura, criando a Embrafilme. Os filmes produzidos lá repercutiram internacionalmente, tiveram milhões de espectadores nos cinemas. O público proporcional do cinema brasileiro nunca foi tão alto: se hoje os filmes brasileiros ocupam 1% das salas, naquela época ocupavam 10%.

A guerra cultural, apesar de não ter efeitos culturais, pode beneficiar os agentes imediatamente com curtidas, votos ou dinheiro, mas degrada o ambiente como um todo.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Já ouvi gente da direita dizendo que é besteira investir em cultura, que o negócio é produzir e ganhar dinheiro. Como se cultura, bem conduzida, tb não rendesse dinheiro.

  2. Acho que a internet e o serviços de streaming promoveram o êxodo nos cinemas. "Antigamente" se você perdesse um filme no cinema tinha que esperar um bom tempo para poder assistir na tv ou vídeo cassete. Hoje é tudo mais rápido e fácil. Acho que hoje só quem curte muito cinema ainda frequenta as salas. É o meu caso.

Mais notícias
Assine agora
TOPO