Foto: Marcelo Camargo/Agência BrasilLula: a ciência política contemporânea ainda hesita em estudar o populismo de esquerda e apontar os neopopulistas

Não há saída no curto prazo para a democracia liberal no Brasil

Mais cidadania é bom, é claro que é. Mas o preço a pagar por esse avanço não pode ser menos democracia
13.07.23

Segundo os mais reconhecidos institutos que monitoram os regimes políticos no mundo, o Brasil não é hoje uma democracia plena ou uma democracia liberal. É uma democracia defeituosa (flawed, para a The Economist Intelligence Unit) ou uma democracia apenas eleitoral (para o V-Dem). Além disso, é uma democracia eleitoral parasitada por dois populismos: o populismo autoritário (dito de extrema direita) e o neopopulismo (dito de esquerda).

Já se estudou bastante o populismo-autoritário ou nacional-populismo (bannonista, de Steve Bannon). São correntemente identificados esses populistas ao redor do mundo: Trump (nos EUA), Farage (no Reino Unido), Le Pen (na França), Salvini e Meloni (na Itália), Erdogan (na Turquia), Orbán (na Hungria), Modi (na Índia) e Bolsonaro (no Brasil) estão entre os principais exemplos.

Todavia, a ciência política contemporânea ainda hesita em estudar o populismo de esquerda e apontar os neopopulistas.

Como definir hoje um neopopulista, ou seja, um populista dito “de esquerda” (como Evo Morales e Luís Arce na Bolívia, Cristina Kirchner e Alberto Fernández na Argentina, López Obrador no México ou Lula no Brasil)?

Um neopopulista, em boa parte dos casos, se diz admirador da social-democracia, mas ressignifica o conceito de democracia (reduzida a regime eleitoral) para designar cidadania. Absolutiza o que chama de social (o povo, entendido como os pobres) e relativiza o que chama de democracia (reduzida à cidadania). O resultado dessa reengenharia conceitual é que, desde que haja eleições e opção preferencial pelos pobres, social-autocracias eleitorais (como a Venezuela) são introduzidas de contrabando no campo da democracia (como fez Lula, antiga e recentemente).

E a consequência antidemocrática mais grave dessa operação é que o sentido da política deixa de ser a liberdade e passa a ser a ordem (uma nova ordem). A política vira então um meio (via de regra guerreiro, de política adversarial como continuação da guerra por outros meios) para empalmar o poder (via eleições) e implantar uma ordem supostamente mais justa, tendo como objetivo precípuo a redução das desigualdades (socioeconômicas).

Se o bem-estar da população (ou a melhoria de vida dos mais pobres) está aumentando (mais cidadania), o regime e o governo estão autorizados a violar (ou reduzir) direitos políticos e liberdades civis (menos democracia). Mas isso é apresentado como um novo tipo de democracia (aquela que funciona: porque governável e porque beneficia o povo e não apenas as elites). Passa a valer então a máxima orwelliana de Xi Jinping: democracia é autocracia.

É preciso entender corretamente o problema. Ninguém, em sã consciência, pode desvalorizar a cidadania. Mais cidadania é bom, é claro que é. Mas o preço a pagar por mais cidadania não pode ser menos democracia. A universalização da cidadania é um processo humanizante. Mas cidadania não é a mesma coisa que democracia. Se substituímos o conceito de democracia pelo de cidadania, a democracia passa a ser relativa. Aí autocracias de Cuba, China, Singapura ou Brunei podem, falsamente, virar “democracias”.

A questão é que menos desigualdade (socioeconômica) não leva sempre a mais igualdade (política). E que mais desigualdade política leva sempre à desliberdade, mesmo que a cidadania, medida por índices de bem-estar ou de direitos e programas sociais inclusivos, possa estar se expandindo.

Democracias liberais são aquelas que não transigem com reduzir direitos políticos e liberdades civis em nome de maior inclusão social, de aumento da renda e da riqueza médias da população ou da redução das desigualdades socioeconômicas. Todas as democracias liberais sabem que é preciso reduzir as desigualdades socioeconômicas, mas estão convencidas de que isso não pode ser feito às custas de menos liberdade (ou de mais desigualdade política). Por isso não há, nas democracias liberais, culto à personalidade de líderes extraordinários, que vão fornecer ao povo, como benfeitores, melhores condições de vida, salvando as populações da fome ou da insegurança alimentar e nutricional, da falta de acesso a bons serviços de saúde e de educação para todos, moradia digna, transporte adequado e segurança pública. Por óbvio, tudo isso é desejável, mas não substitui a democracia.

Democracias liberais não valorizam a capacidade do governo de se impor à sociedade (ou conduzi-la) – mesmo dando casa, comida e roupa lavada for all – acima da possibilidade da sociedade de controlar o governo. Isso é o que distingue uma democracia liberal do outro tipo de regime democrático (a democracia eleitoral) e dos demais tipos de regimes não democráticos (as autocracias eleitorais e as autocracias fechadas).

Claro que as democracias liberais são minoritárias no planeta (em número de países e em população): segundo o mais recente relatório (2023) do V-Dem Institute (Universidade de Gotemburgo), temos apenas 32 democracias liberais no conjunto dos 179 países monitorados. Só para dar um exemplo, existem hoje apenas 5 democracias liberais nas Américas (EUA – uma flawed democracy segundo a The Economist, Barbados, Chile, Costa Rica e Uruguai; no relatório do ano passado tínhamos 6, pois figurava na lista o Canadá, que decaiu para democracia eleitoral). Isso não significa que as democracias liberais não sejam os países com melhor vida cívica do mundo, com mais direitos políticos e liberdades civis e com menos corrupção; ou seja, melhores lugares para se viver.

Parasitado por dois populismos em disputa (o neopopulismo, agora no governo, e o populismo-autoritário, praticando uma tosca oposição antidemocrática), o regime brasileiro está muito longe de passar a ser uma democracia liberal. E ficará assim por longo tempo, enquanto não surgir uma oposição democrática que se instale como centro de gravidade da política, em torno do qual tenham de orbitar o conjunto das forças políticas em disputa.

Um exame da nossa situação política atual revela que não temos as condições necessárias para qualquer avanço significativo nesse terreno. Por isso é bom cair na real. Não há saída para a democracia liberal no Brasil no curto prazo. Se não pararmos de sonhar com uma solução mágica imaginária de curto prazo (2026) não conseguiremos cumprir o papel necessário para construir uma alternativa real no médio prazo (2030-2034) ou, mais realisticamente, no longo prazo (2038-2048). Sim, este é o desafio de uma geração.

E que papel seria este? A resposta deveria ser óbvia (mas, muitas vezes, não é): multiplicar o número de democratas liberais, pois não há democracia liberal sem democratas liberais. É difícil, sabemos. Mas, para quem está realmente convertido à democracia, esse é o tipo de projeto ao qual vale a pena dedicar a vida.

 

Augusto de Franco é escritor

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  1. Canso de repetir, mas pra mim a solução passa pela instalação do parlamentarismo, por mais estranho que isso possa parecer. Se tirarmos a figura do presidente manda-chuva populista do caminho, inevitavelmente voltaremos nossa atenção para os parlamentares. Pra fechar, voto distrital ou distrital misto, pra população se identificar com seus congressistas e saber de quem cobrar ativamente.

  2. Concordo plenamente. Parece que nos falta uma cultura democrática. O problema não ė só Lula e Bolsonaro, ou os partidos políticos. Ė a própria sociedade que não cultiva os valores da Democracia. Exemplo: aqui, jornalistas defendem censura e Advogados defendem inquéritos ilegais no STF…

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