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Censura indicativa

Falta de transparência na revisão de conteúdos exibidos na televisão gera críticas, mas aquiescência não é obrigatória
13.07.23

As cenas de Dirty Dancing — Ritmo Quente são as mesmas há 36 anos. Nelas, o ator Patrick Swayze interpreta um professor de dança galã que conquista Jennifer Grey em um hotel nos Estados Unidos, tendo como fundo uma melosa trilha dos anos 1980. Aos olhos dos técnicos do Ministério da Justiça, no entanto, algo mudou na trama. Para eles, o filme não parece mais tão inocente quanto antes — e assim, passou de “não recomendado para menores de 10 anos” para a faixa seguinte, dos 12 anos.

A alteração, feita a partir de uma denúncia anônima, mostra o papel da Coordenação de Políticas de Classificação Indicativa, ligada à pasta, em revisitar padrões e adotar parâmetros mais moralistas entre o que deve e o que não deve ser visto por crianças e adolescentes. Uma equipe de 26 pessoas — metade delas estagiárias — analisa uma miríade de obras novas (do novo filme da Barbie, indicado para maiores de 12 anos, ao novo jogo Zelda, para maiores de 10), e analisa obras antigas após as denúncias anônimas.

Nos últimos meses, uma série de filmes, como a série de terror “Pânico”, teve a classificação indicativa modificada, alterando o público potencial. A revisão atingiu também novelas, como “o Rei do Gado”, quando essa foi reprisada pela Globo.

Em um pedido de Lei de Acesso à Informação feito por Crusoé, o Ministério da Justiça confirma que centenas de obras foram revistas desde o início dos anos 2000. Na maior parte dos casos, o padrão se repete. Telespectadores que se sentem incomodados com o conteúdo fazem uma denúncia, que é analisada pelo Ministério da Justiça. Tempos depois, o órgão emite seu veredito sem dizer quem fez o pedido ou qual cena motivou uma mudança na classificação. Essa falta de transparência estimula críticas e alimenta rumores.

No ano passado, circulou a história de que o Ministério da Justiça iria alterar a classificação indicativa do filme Branca de Neve e os Sete Anões, de 1938. O problema seria a cena em que o príncipe beija Branca quando ela está dormindo, o que configuraria abuso. Essa informação nunca foi confirmada. A Secretaria Nacional de Justiça só pediu para que fosse acrescentado um aviso de violência no início da exibição. Como o processo é de acesso restrito, não é possível saber qual é a cena de violência que chamou a atenção dos burocratas. Crusoé enviou um email, seguindo as recomendações do site, questionando isso, mas não recebeu resposta até o fechamento desta edição.

Em um caso curioso, a pasta levou 21 anos para dar desfecho a um processo que questionava a classificação de Titanic, a encenação do naufrágio feita por James Cameron em 1997. Em 2000, alguém pediu que o filme não fosse considerado livre para todos os públicos. No ano seguinte, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro, o filme foi revisto para a faixa dos 12 anos.

Apenas três obras foram incluídas, após reclamação, na faixa mais restrita, onde, segundo a cartilha do Ministério da Justiça, predominam “sexo explícito, apologia à violência ou ao uso de droga ilícita”. Nenhum caso foi mais estridente que o filme Como se tornar o pior aluno da escola, uma esquecida comédia de Danilo Gentili revista cinco anos após seu lançamento. Atendendo a reclamações de nomes bolsonaristas a uma cena onde o ator Fábio Porchat insinua um suposto ato sexual, o filme foi tarjado como para maiores de 18 e o Ministério da Justiça comandado por Anderson Torres pediu a retirada do filme da Netflix. Ao fim, a Justiça proibiu a censura da obra e o filme permanece no ar.

Essa série de casos é vista de duas maneiras distintas na nossa sociedade. De um lado, há quem aplauda toda restrição e toda censura, acreditando que os seres humanos devem crescer com o mínimo de incômodos possíveis. Querem que seus filhos cresçam o mais protegidos possível de um mundo que consideram desajustado. De outro, há o grupo dos que acham que tais conflitos são importantes para que as pessoas desenvolvam habilidades e mecanismos para lidar com suas próprias frustrações e com os inconvenientes que derivam do relacionamento com os outros.

A temática foi abordada no livro The Coddling of the American Mind – How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure) (A mente americana mimada como boas intenções e más ideias estão preparando uma geração para o fracasso, em tradução livre), de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff. Para eles, o excesso de proteção pode causar mais mal do que bem a uma futura geração. “Dado que os riscos e estresses são naturais, pais e professores deveriam ajudar crianças a desenvolver suas habilidades para crescer e aprender com tais experiências“, escrevem os autores. “Como diz um ditado: ‘prepare a criança para a rua, e não a rua para a criança’, por mais que hoje pareçamos estar fazendo justamente o contrário.” A falta de exposição a conteúdos diferentes ou até agressivos poderia prejudicar o desenvolvimento da autonomia e gerar seres inseguros e medrosos, que tendem a reagir de maneira histérica, sem conseguir resolver as situações em que são colocados.

A discussão, claro, vai continuar, especialmente porque toca em pontos sensíveis para os dois lados do debate. Há os que ficam aflitos porque seus filhos estariam expostos a conteúdos que eles não controlam e há os que ficam revoltados com qualquer ameaça de censura. “Lutamos tanto tempo para conseguir a liberdade artística, mas é um momento onde o politicamente correto está muito forte”, lamenta o cineasta e colunista da Crusoé Josias Teófilo, que escreve um artigo nesta edição sobre o tema. “Quando há uma cena de violência ou algo mais grave, não significa que se está produzindo uma apologia a algo. É uma representação de algo.”

Resta lembrar que a classificação indicativa não é uma ordem, apenas uma recomendação. Trata-se de um dos principais frutos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que nesta quinta-feira (13) completou 33 anos. O texto, que substituiu o Código de Menores de 1979, preconiza “a proteção integral à criança e ao adolescente”. Em 2016, uma mudança significativa, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a classificação é, como o nome diz, indicativae não pode impedir canais de TV e cinemas de veicular seus produtos.

“A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes”, esclarece o voto vencedor do STF. “O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia.”

Sendo assim, as emissoras são balizadas pela classificação, mas podem distribuir os filmes como bem entenderem ao longo da programação diária. “As notas do Ministério da Justiça se dirigem mais aos pais, e não diretamente aos veículos de comunicação e produtores de espetáculos públicos”, diz Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advogado que atuou no caso. “É o pai ou a mãe quem deve decidir se um filho com 14 anos pode ver um filme para 16 anos.”

Nos próximos anos, a classificação indicativa vai testar o excessivo zelo de alguns pais — que se mostram extremamente preocupados com o que seus filhos veem na televisão, mas os deixam acessar os celulares por horas, sem qualquer controle. “No caso das crianças, é preciso considerar que estamos tratando com um público em desenvolvimento, que merece uma peculiar atenção”, argumenta Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Federal de Psicologia. O também professor da UERJ defende que a discussão tem de se tornar mais complexa, sem tirar a criança do foco. “Tudo o que não dialoga com a proteção integral da criança e o adolescente dialoga com o moralismo ou mesmo a censura”, conclui.

O delicado nessa tarefa compartilhada por pais e autoridades é evitar conteúdos nocivos sem atrapalhar o desenvolvimento dos pequenos e dos adolescentes, e sem descambar para o moralismo ou para a censura. Um desafio que não é só do governo.

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  1. A estupidez humana não tem limites, é infinita. De 1 lado censurar obras consagradas há décadas em nome da imbecilidade que é o politicamente correto, de outro permite que as crianças interajam em espetáculos eróticos de drags queens e mcs pipoquinhas da vida. Na realidade é o histerismo da falta do que fazer

  2. Texto muito inteligente! Uma coisa que sempre penso quando vejo essas censuras é que elas só alcançam a ficção e se, em algum momento, essa turma vai tentar apagar também a realidade. E quanto a quem vive a realidade de guerras de facções em lugares pobres, ou nas ditaduras ao nosso redor? Se essas pessoas começarem a falar, os puros vão sair de perto?

  3. Os jogos online tem classificação indicativa? Não estariam também atrapalhando o desenvolvimento da criança e do adolescente?

  4. Não vai ser uma indicação de nenhum ministério que impedirá uma criança de ver o que quer. Os meios tecnológicos estão disponíveis e fáceis de acessar. Ainda é é a formação moral, ética e cultural que vem de casa que mais pesa.

  5. Que se protejam as crianças, mas que se preparem os futuros adultos. Os millenials não sabem lidar com as frustrações da vida social, padecem como nenhuma outra geração de depressão, lêem gibis aos 30 anos como se fosse Dostoiévski e elogiam os filmes dos vingadores como se se tratasse de um clássico. Afofar ainda mais o mundo pras novas gerações não vai dar certo

  6. A liberdade artística é muito bem vinda para povos educados mas infelizmente não somos isto mas ignorantes deseducados por mestres ideologizadas em pensamento medieval fruto da estupidez de elites tão cínicas quanto presa fácil de imbecis psicopatas com suas taras ridículas que deveriam vivê-las em privado e ver que sua liberdade é limitada na do outro ... mas é o que se pode esperar de uma sociedade que libertada por decreto não ousou sair das senzalas.

  7. A proteção deve existir mas da mesma forma ninguém deve ser criado em uma redoma. Equalizar isso é muito difícil e a discussão é válida.

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