AlexandreSoares Silva

Nicki Dugan Pogue/Flickr

Que peninha do coitado

08.06.23

Dois dos comentários que mais odeio são “chora mais” e “ai, coitado”.

Alguém faz um comentário num tom completamente normal e não choroso — “Isso e aquilo outro tem que mudar”, digamos — e recebe um “Chora mais” na cara. É desagradável porque, quando recebo esse tipo de comentário, sempre perco alguns segundos me perguntando se estava chorando mesmo.

É um comentário eficiente, então. Não nego. Mas é desonesto. Nem toda reclamação é uma reclamação num tom choroso, certo? E às vezes nem é uma reclamação, a pessoa só está analisando uma situação ruim, e recebe nas fuças a acusação de estar soluçando e rolando no chão.

Mas quanto mais você nega que estava chorando, mais patética a situação fica, porque em um ponto você, se não estava chorando antes, está chorando agora. Então vou parar por aqui.

Sobre o onipresente “ai, coitado, estou morrendo de pena, nossa que peniiinha”, isso me lembra de uma história que ouvi de um amigo na semana passada.

Esse amigo, que é advogado, estava numa bancada com outros advogados. Era um concurso público e eles estavam selecionando alguém para uma vaga não sei pra quê.

Passaram o dia examinando algumas dezenas de candidatos e, no final do dia, os membros da bancada discutiram os resultados.

Se fossem julgar por quem tinha acertado mais respostas, o consenso era que quem ia ser selecionado era um candidato branco. Todos os membros da bancada reconheceram isso. Mas logo houve uma discussão bastante aberta e sem eufemismos: “A gente como minoria sofreu tanto preconceito e opressão pra chegar até aqui, que chegou a hora da gente reverter a situação, está na hora [isto realmente foi dito] da gente oprimir também”.

Você pode achar que estou exagerando pra que isso soe caricaturalmente estúpido, mas foi assim que a história chegou pra mim. Falavam abertamente desse jeito.

Meu amigo, que era o único homem branco da bancada, começou ouvindo tudo um tanto chocado e tentou defender o garoto. Mas, com a passagem dos minutos, foi se convencendo com esse argumento do “chegou a nossa hora de oprimir”. Todos começaram a dar uma nota propositalmente baixa para o candidato branco para que o aprovado fosse ou negro ou indígena ou só uma mulher branca mesmo. Foi o que aconteceu.

Conto a história porque não sei se todo mundo tem a consciência de que coisas assim estão acontecendo e vão acontecer cada vez mais.

Mas tenho certeza que o que aparece na mente de muita gente lendo isto é “Chora mais, ô coitado, que peninha”.

Você pode dizer um “ai, coitado” sarcástico para qualquer pessoa que passe por qualquer coisa ruim, desde que a vida dela ainda mantenha algum resquício de ordem e significado. Desde que ela não seja completamente destruída, desde que lhe sobrem alguns dentes, metade da família, um iogurte estragando na geladeira.

Alguém leva um taco de beisebol no rosto, por nada, só por existir, mas ainda tem um carro funcionando: “Ô, dó”. Roubam a peruca de alguém, incendeiam sua moto e o seu gato, mas ele ainda tem um patinete e umas mariposas secas pra comer: “Ai, coitado! Que peninhaaaa!!!”.

Meu ponto é que dizer um “Ai, coitado” sarcástico para quem sofreu uma injustiça é uma reação doentia. Mas você sabe disso. Nem sei por que estou falando disso, exceto que quando estamos cercados de reações doentias é preciso falar sobre isso de vez em quando.

Consideremos que houve injustiças no passado e tal. A reação das pessoas agora é cometer injustiças em sentido contrário. Simplesmente parar de cometer injustiças parece não ocorrer a ninguém.

O único jeito sensato de diminuir a quantidade de injustiças seria fazer um esforço pra parar de cometer injustiças. Não? Me parece que tem uma lógica nisso aí. Mas se eu fosse sugerir isso pra bancada da história que contei, iriam me olhar como se fosse um truque retórico da minha parte, como se eu estivesse tentando enganar alguém.

E ninguém os engana. Bem na vez deles de cometer injustiças, justo agora pega mal cometer injustiças? Ah, tá bom.

Distribuir miséria e injustiça. Bom, por que não? Isso temos bastante pra distribuir.

 

Alexandre Soares Silva é escritor

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  1. Ótimo texto! Ñ vou falar sobre ele, mas sobre o comentário citado nele. Esse tipo de comentário fazem aqueles q, simplesmente, ñ sabem argumentar. A maioria p/ falta de estudos e, principalmente, de leitura. Ninguém fundamenta + nada, todos repetem frases prontas da net. Parece chic, moderno. Como aquela praga q saiu do gueto do telemarketing, o gerundismo: "Momentinho, VOU ESTAR lhe REPASSANDO...". Tanto faz o "chora mais" como "vou estar lhe enviando", os dois são fraqueza de conhecimento

  2. Onde isso? essa de ah coitado, chora mais um pouco, que peniiiinha dele...onde eu estou vivendo que não vejo isso? é nas redes sociais, nos debates despersonalizados, onde nome falso viceja? se for lá então tá explicado, ando por fora desse mundinho, mas se não for, aí já não sei de mais nada. Aliás, só sei que nada sei.

  3. Muitos que reclamam de injustiça não a cometem por falta de oportunidade, infelizmente. O maior exemplo disso é dado pelo Descondenado que ocupa a presidência do país.

  4. Não se conserta um erro cometendo outro. Isto daí é a perpetuação da injustiça. Simplesmente isso. É a mesma coisa do Lula falar em união e estimular a polarização.

  5. Muito bom Alexandre. Tenho visto muitas dessas "justiças injustificáveis". Cada vez mais a justiça serve aos interesses próprios e de sua classe. O que fazem pode até sair bem na foto, mas é de um extremo vazio. Fico pensando se eles tem capacidade de projetar as consequências dessas ações para além de seus períodos de atuação pública.

  6. Sempre um prazer ler as colunas do Alexandre. Reclamo, porém, que deveriam ser semanais. Eu me identifico sempre com o que ele expressa nelas.

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