Ricardo Stuckert/PRLula com Xi Jinping em Pequim: "nova ordem" não valoriza a democracia

Por que a tal de ‘nova ordem mundial’ é uma má ideia?

Reestruturação almejada por China e Rússia, duas autocracias, não deveria ser sequer considerada por um governo representativo de nossas aspirações democráticas
08.06.23

Qualquer sugestão, proposta, imposição ou surgimento de uma nova ordem política e econômica, a mais forte razão, uma ordem que seja global, implica, necessariamente, a ruptura com a ordem pré-existente, em curso ou vigência num determinado período ou região. Normalmente, quaisquer ordens existentes são naturalmente transformadas a partir de mudanças estruturais nos sistemas econômicos e regimes políticos sobre os quais se sustentavam durante certo tempo. Mudanças “transformacionais” sempre ocorreram ao longo de toda a história humana, mesmo naqueles impérios mais solidamente estabelecidos ao longo de séculos. As rupturas são mais raras, sobrevindo como resultados de grandes catástrofes, guerras civis ou de agressão por um império mais forte.

Quais foram as grandes rupturas da ordem mundial na história?

Estados-nacionais constituem um tipo de organização estatal relativamente recente na história da humanidade. Anteriormente, povos, etnias, religiões, reinos e comunidades de diversas origens e formação viviam, sobreviviam ou se transformavam em ritmos e interações relativamente erráticas, mais frequentemente sob o domínio de impérios, que sempre foram mais resilientes do que pequenas unidades políticas. O conceito de Estado nacional deriva dos acordos de Westfália, em 1648, que passaram a reconhecer certos direitos e soberanias dos poucos Estados que deles participaram no século 17. Eles são quase contemporâneos da expansão e consolidação de um dos mais longevos impérios desde a era moderna: o império otomano, que quase conquistava Viena por essa época e que durou cerca de 600 anos até ser dissolvido ao final da Grande Guerra de 1914-18. Antes disso, os impérios com maior destaque na história do mundo foram o romano (seis séculos desde 300 a.C.) e o chinês, que se arrastou por 26 dinastias desde 2 mil anos a.C. até o início do século 20.

Cada um dos impérios relativamente organizados e resilientes nasceram, perduraram e desapareceram em meio a grandes rupturas da ordem que eles tinham conseguido estabelecer nos seus períodos respectivos de dominação bem-sucedida. O próprio Império Celeste foi por duas vezes transformado por invasões de povos estrangeiros: os mongóis, no século 12, que formaram o maior império do mundo nos 300 anos seguintes, e os manchus, que substituíram a dinastia Ming no século 17. O grande Império Mughal, da Índia, foi conquistado pela Companhia Britânica das Índias Orientais, antes de ser cedido/vendido, ao Império Britânico, o maior império da era contemporânea até seu desmembramento no pós-Segunda Guerra. As rupturas mais evidentes numa história mais regional do que global são relativamente poucas.

Na sequência da dissolução do Império romano do Ocidente – o do Oriente durou mil anos mais, como relatou Edward Gibbon –, os territórios atuais da Europa ocidental e central se fragmentaram em contínuas guerras, aparentemente unificadas pela fé cristã e por uma aparência de Sacro Império Romano-Germânico e pela dominação tanto espiritual quanto temporal da Santa Sé. A primeira ruptura da ordem política nas comunidades cristãs se deu a partir do revisionismo protestante, contra o império católico comandado a partir de Roma, por papas nem sempre muito cristãos. As guerras de religião que se disseminaram a partir do desafio de Lutero (e de outros exegetas da fé cristã) foram responsáveis por imensas destruições no coração da Europa até que o respeito à soberania respectiva de cada Estado cristão foi consagrado pelos tratados de Vestfália.

O Sacro Império Romano-Germânico sobreviveu precariamente durante quase dois séculos, até ser declarado extinto por Napoleão, cujas invasões (Itália, Prússia, países ibéricos, até a Rússia) alteraram completamente o mapa da Europa e até do mundo (independências das colônias ibero-americanas). Uma nova ordem, quase global, foi então estabelecida formalmente em Viena, em 1815, no seguimento das guerras napoleônicas, num contexto de domínio generalizado das novas potências europeias sobre grande parte do mundo. Essa ordem, apenas ligeiramente perturbada pela primeira guerra da Crimeia (1853-55), persistiu por quase um século, até ser desmantelada completamente na Grande Guerra de 1914-18, quando pela primeira vez se tentou estabelecer um sistema multilateral, a Liga das Nações, para garantir a paz e a segurança internacionais. A experiência não foi das bem-sucedidas, pois que três tentativas de restabelecer o equilíbrio de potências e a cooperação econômica sob o signo do padrão ouro fracassaram completamente em seus objetivos: a conferência monetária de Gênova (1922), a comercial de Genebra (1927) e a econômico-financeira de Londres (1934). A partir daí, o mundo entrou num vórtice de guerras locais até o precipício.

O fracasso se deu basicamente em função das potências revisionistas do entre guerras, todas elas de tendências autoritárias e expansionistas: depois do desafio bolchevique à ordem capitalista, a tentativa mussolinista de reconstruir a grandeza do antigo império romano, o ímpeto revanchista da Alemanha hitlerista, desejosa de se vingar das humilhações infligidas pelo Tratado de Versalhes (1919) e o desejo dos militaristas fascistas do Japão de estabelecer o seu próprio domínio na Ásia Pacífico e na China, em substituição ao imperialismo das potências ocidentais, todos esses processos precipitaram a maior catástrofe bélica e humana jamais vista na história. Ela deu lugar a uma nova ordem mundial, forjada em Bretton Woods, formalizada em San Francisco e que se manteve num contexto de bipolaridade geopolítica e nuclear até 1991. Essa ordem durou algumas décadas, mas já tem desafios.

O que são potências revisionistas? Qual a experiência histórica com elas?

Potências revisionistas costumam ser impérios ascendentes, ou Estados nacionais fortes o bastante para elevar a sua voz no plano externo, e que, descontentes com a estrutura de poder que encontraram em seu processo de ascensão, decidem contestar a ordem existente. Em quase todas as ocasiões, o resultado de ambições não acomodadas numa acomodação e num confronto interimperial, o resultado foi o deslanchar de conflitos bélicos que podem chegar a um equilíbrio de forças total ou parcialmente novo. Assim ocorreu no contexto das guerras napoleônicas, do início do século 19, assim como no fracasso do equilíbrio de potências europeias um século depois, que redundou na primeira tentativa de estabelecimento de um sistema multilateral para administrar, ainda que de forma oligárquica, paz e segurança internacional. A Liga das Nações era uma promessa de gestão de conflitos que jamais chegou a ser eficaz para os objetivos a que se propunha: não conseguiu responder a contento nem na invasão da Manchúria pelo Japão em 1931, nem na da Abissínia (o único Estado africano membro da Liga) massacrada pela Itália em 1937, nem nas crises sucessivas criadas por Hitler desde sua ascensão ao poder, inclusive no apoio bélico ao general Franco na guerra civil que destruiu a República espanhola entre 1936 e 1939.

Não foi possível, a despeito de todas as concessões, contentar todas as potências ascendentes, possuindo novas aspirações de um lugar ao sol, no quadro da dominação de poucos imperialismos europeus sobre a maior parte das periferias fornecedoras de matérias primas. O resultado traduziu-se na espiral agônica dos fascismos expansionistas que engolfou quase todo o mundo entre 1937 (invasão do resto da China pelo Japão) e entre 1939-1945, até sua derrota completa na maior conflagração bélica da história, com destruição generalizada na Europa e na Ásia e consequências para o resto do mundo.

Não obstante oito décadas de paz relativa – não esquecendo as guerras por procuração no intervalo –, o mundo parece aproximar-se de um novo período de tensões causada por potências revisionistas: a Rússia, desejosa de se vingar das humilhações sofridas depois do desmantelamento do império soviético, em 1991, a China, descobrindo que o império americano deseja conter sua ascensão, e disposta a nunca mais sofrer as humilhações impostas pelas potências ocidentais e pelo Japão desde o declínio do Celeste Império, na dinastia Qing. Estaríamos chegando perto de uma nova ruptura da ordem mundial?

O Brasil precisa de uma nova ordem global? Tem algo a ganhar com isso?

O Brasil foi um dos países “periféricos” e “subdesenvolvidos” que mais se beneficiou com a nova ordem surgida nos estertores da Segunda Guerra, em Bretton Woods, para sua estrutura econômica, San Francisco para seu sistema (precário) de preservação da paz e da segurança internacionais, além de mecanismos próprios para a cooperação entre Estados. Mesmo sem ser um grande comerciante global, soube aproveitar as possibilidades de explorar suas vantagens comparativas para se tornar, atualmente, um dos grandes celeiros globais. Também acolheu enormes volumes de investimentos diretos estrangeiros para dinamizar sua pobre indústria do início do século 20. E também completou a “substituição de importações” no campo científico ao importar muitos cérebros para suas universidades e mandar milhares de estudantes graduados completarem especializações no exterior.

Que razões teria para o projeto de substituir a ordem que garantiu razoavelmente sua gradual ascensão a uma das mais importantes economias do mundo por uma outra ordem global que resultasse de um novo conflito geopolítico de resultados imprevisíveis? Algum interesse maior de natureza tão fundamental que não permitisse acomodar suas aspirações nos quadros existentes da ordem de Bretton Woods e da ONU? Estruturas orgânicas à parte, essa nova ordem, tal como vem sendo proposta por duas grandes autocracias não ocidentais, teria condições de preservar seus outros vetores no terreno dos valores e princípios que fundamentam sua adesão a um regime democrático, a um Estado de Direito garantidor das liberdades e de adequada defesa dos direitos humanos, numa sociedade aberta às diferenças e ao respeito das individualidades? Trata-se de uma aposta arriscada, que não deveria ser sequer considerada por um governo representativo de nossas aspirações democráticas.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomat e professor

www.pralmeida.org

diplomatizzando.blogspot.com

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  1. O curioso é que Rússia e China têm interesses objetivos e rancores históricos para avançar para o desafio revisionista. O Brasil petista parece apenas ter uma ânsia ideológica a satisfazer, pois não consigo ver o que tem a ganhar com o seu alinhamento a Rússia e China e o arruinar do conserto internacional vigente. Ele deveria, pelo contrário, melhor se encaixar no modelo integracionista internacional através do comércio, no que só tem a ganhar com sua estabilidade e paz

  2. A sua pergunta pode facilmente ser respondida. O grande ladhao quer que o Brasil seja uma autocracia.

  3. Lula, como líder mundial é irrelevante. Sonha em ser admirado e tem um ego enorme e absolutamente desproporcional à sua real e insignificante estatura. Quando abre a boca percebe-se sua ignorância cultural e nos ridiculariza como nação. Fala bobagens e mentiras sem se envergonhar. Usa a Presidência do nosso país p/ enriquecer a si mesmo e eventualmente aliados, parentes e amigos. Inescrupuloso, alia-se a ditadores como Maduro q está 100% envolvido c/ o narcotráfico. Viva a Lava Jato!

    1. ..."ça va mal finir". Para nós e o caPeTa.

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