Shealah Craighead/Official White HouseO ex-presidente Donald Trump: "Eu não gosto do termo ‘woke’"

O futuro será woke

Embora restrita em seu alcance social, essa praga ideológica é resiliente, e o provável retorno da direita populista à Casa Branca só vai fortalecê-la ainda mais
08.06.23

Eu não gosto do termo ‘woke’“, declarou, na semana passada, Donald Trump, ex-presidente (e possível futuro presidente) dos Estados Unidos. “Pois eu só ouço ‘woke, woke, woke’. É só um termo que eles usam. Metade das pessoas não sabe defini-lo, elas nem sabem o que é isso.”

Trump se faz de bobo, mas não é bobo. Ele sabe muito bem o que é woke. Mas sabe também que isso não é uma preocupação central para o eleitorado. Distancia-se assim de seu maior opositor nas primárias republicanas, Ron DeSantis, o governador da Flórida que se cacifou como o grande censor da esquerda censória (falei disso em um texto de fevereiro, “Escondam os livros, vigiem as redes!”).

Woke é mesmo difícil de definir. Não é uma entidade da mesma ordem do marxismo, do liberalismo, da social-democracia ou do anarquismo: antes de ser uma doutrina com fundamentos ideológicos e propostas políticas claramente discerníveis, o “wokismo” é uma sensibilidade. O sujeito woke – tipicamente, o jovem universitário de esquerda – é aquele que cultiva uma capacidade hipertrofiada de se ofender. Sua pele fina pode entender um toque no ombro como assédio sexual; seu olhar perscrutador encontra o racismo no clipe da cantora pop branca que se apresenta ao lado de dançarinas negras; seu ouvido afinado descobre “microagressões” em frases cotidianas até então tidas como inocentes. 

Já se sugeriu que essa sensibilidade anda em baixa. David Rozado, cientista de dados da Nova Zelândia, vem contabilizando palavras e expressões do léxico woke – “inclusivo“, “patriarcado” e “masculinidade tóxica”, entre várias outras no The New York Times, jornal simpático à hipersensibilidade identitária. Descobriu que sua incidência vem baixando significativamente nos últimos quatro anos. O woke já teria passado de seu pico de influência? Slavoj Zizek discorda. “O wokismo (…) está gradualmente sendo normalizado, aceito até por aqueles que intimamente desconfiam dele, e praticado pela maioria das instituições corporativas, acadêmicas e de Estado”, diz o filósofo esloveno em um artigo publicado em fevereiro no site Compact

Aos 74 anos, Zizek pertence a uma geração anterior a dos boomers, que, segundo o folclore da internet, são os que mais resistem à justiça social woke. Como marxista da velha guarda, ele é muito acurado na sua crítica às contradições da esquerda pueril. Seu artigo examina, por exemplo, os interesses comerciais ocultos (existe um “capitalismo woke”, diz Zizek) sob uma das mais controversas bandeiras do novo progressismo: a prescrição indiscriminada de bloqueadores de hormônios para crianças e jovens em dúvida com sua sexualidade. Ele também examina os expedientes a que a turma recorre para silenciar críticos. E, sobretudo, nota o elitismo da barricada woke: a despeito de seu propalado antirracismo, os “líderes da revolta” não são, diz Zizek, as vítimas da “brutalidade racista“, mas uma “minoria relativamente privilegiada” dentro da minoria que frequenta universidades.

A academia, como bem observou o jornalista americano Ross Douthat em um artigo publicado no Brasil pela Folha de S. Paulo, é o meio por excelência do woke: desconectada das demandas de massa, ela cai presa de “regras e slogans” que emergem em seus círculos internos. A grande imprensa mantém seus enclaves woke, mas ainda precisa responder a um público mais preocupado com os boletos do que com o gênero dos pronomes. O próprio The New York Times – onde Douthat escreve regularmente – caiu em desgraça com a militância woke por causa de reportagens que contrariam dogmas do lobby trans.

Na universidade, os departamentos de humanidades são os mais propícios aos controles ideológicos do progressismo identitário. Mas as “ciências duras” tampouco são imunes ao cerceamento. No mês passado, o físico Lawrence Krauss relatou um caso alarmante no site Quillette, um dos melhores veículos americanos do pensamento não alinhado. O artigo de Krauss é sobre Geoffrey Marcy, astrônomo que fazia pesquisa de ponta na descoberta de planetas em sistemas solares distantes do nosso. Acossado por denúncias de assédio sexual, Marcy reconheceu suas atitudes inapropriadas e deixou seu posto na Universidade de Berkeley no final de 2015.

O caso em si já tem muito de discutível. Marcy era um macho grudento, que fazia massagens não solicitadas em suas alunas, mas nunca foi acusado de ter coagido alguma delas ao sexo. De todo modo, o comportamento do astrônomo não é a preocupação maior de Krauss: o mais grave é a ameaça de excluir o nome de Marcy de descobertas que ele efetivamente fez. Em março, um artigo com 16 autores foi publicado em uma plataforma na qual astrônomos compartilham pesquisas em andamento, antes de submetê-las ao crivo das revistas especializadas. O nome de Marcy aparecia no meio desse time de pesquisadores – e levantou furor. Como se pode admitir um “assediador serial” como coautor de um paper sobre detecção de planetas distantes? O artigo foi tirado do ar. O precedente que o caso abre é sério, diz Krauss. Vislumbra-se um futuro no qual o trabalho de cientistas inovadores será apagado porque o coro de puritanos no Twitter reprova seus hábitos sexuais.

Dar o devido crédito ao pesquisador que descobre exoplanetas só detectáveis com supertelescópios e espectômetros: não imagino que esse tema vá aparecer nos debates entre pré-candidatos à presidência pelo Partido Republicano. Trump é tão ou mais antiwoke do que DeSantis, mas é mais esperto. Sabe que os ganhos eleitorais nessa frente da guerra cultural são limitados

Com Trump ou DeSantis, a direita populista tem boas chances de voltar à Casa Branca. A derrota do Partido Democrata não enfraquecerá o woke: pelo contrário, a santimônia dogmática da esquerda identitária tende a se radicalizar com o inimigo maior no poder. O título do artigo de Zizek diz tudo: “Wokeness is here to stay”. O woke veio para ficar.    

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor 

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  1. Perfeito. Essa guerra já perdemos. Uma vez que os defensores woke estão na academia, imprensa, arte e parte do poder político, a normalização da agenda é só uma questão de tempo A reação (a denúncia na verdade) deveria ter sido mais vigorosa e mais cedo.

  2. E depois reclamamos do analfabetismo funcional do eleitor brasileiro. Temos que concluir que o povo vive em busca de um salvador para os seus problemas. Entretanto, só progride mesmo quem constrói o seu próprio caminho.

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