Maristela do Valle/Folhapress"Passos da Paixão", de Aleijadinho: “a última vez que Deus esteve presente na arte do Ocidente”

A tragédia cultural brasileira

Os artistas foram perdendo pontos de contato com as grandes linhas da cultura, que remetem a Portugal, à cultura ibérica e latina
08.06.23

O Brasil já deu importantes contribuições à cultura ocidental. Como diz Antonio Risério “tecemos uma variante mestiça, plástica e criativa da língua portuguesa”; a arquitetura e a escultura de Aleijadinho, que é, segundo Germain Bazin, “a última vez que Deus esteve presente na arte do Ocidente”; a literatura de Machado de Assis; a música de Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos; o projeto da cidade de Brasília e a arquitetura de Oscar Niemeyer (presentes em qualquer livro de história da arquitetura e do urbanismo), entre outras coisas.

Além disso, Santos Dumont realizou o antigo sonho humano de voar com seu 14 Bis, Ayrton Senna nos colocou entre os melhores do automobilismo e o futebol nem se fala – foi a nossa glória por muito tempo.

Especialmente na década de 1950 o Brasil exportava cultura: a música de Heitor Villa-Lobos era aclamada e tocada no mundo inteiro; Oscar Niemeyer projetara o edifício-sede da ONU em 1947, em Nova York; no final da década, explodia a Bossa Nova; e os olhos se voltaram para a construção de Brasília, momento de culminância final da arquitetura moderna.

Não é preciso ser nenhum crítico cultural ou especialista em arte para notar que a cultura brasileira perdeu relevância de lá para cá. Acumulam-se, no exterior, os clichês sobre a cultura brasileira. Parece não existir nada de novo comparável ao que o país já produziu.

Basta olhar as cidades brasileiras, em sua feiura, para ver que trata-se de um estado geral da cultura em nosso país.

Qual o motivo disso tudo?

Primeiro, não é só a cultura brasileira que padece de renovação. Muito do cinema produzido atualmente – inclusive premiado por festivais – é tão ruim que não dá para assistir. Na música, a situação é semelhante. A arquitetura das grandes cidades se parece tanto que são praticamente indistinguíveis, com seus arranha-céus com pele de vidro. Mas, no caso brasileiro, o tombo é maior. As grandes cidades do mundo se homogeneizaram e enfeiaram, mas os centros das capitais brasileiras parecem cenários de filmes de zumbi.

As causas da nossa tragédia cultural são antigas, e merecem longa reflexão. Mas podemos esboçá-las.

Os artistas brasileiros foram perdendo pontos de contato com as grandes linhas da cultura brasileira, que remetem a Portugal, à cultura ibérica e latina – ou, nas palavras de José Ortega y Gasset, à cultura mediterrânea (a cultura que existiu ao redor do Mar Mediterrâneo durante o Império Romano, caracterizada especialmente pelo sensualismo).

Um dos principais responsáveis pela ruptura foi a Semana de Arte Moderna de 1922, ao fazer tábua rasa do passado do Brasil, propor vanguardices inócuas com trocadilhos linguísticos, desdenhar da literatura brasileira feita pela geração anterior (geração que incluía Machado de Assis e Lima Barreto) e privilegiar a fauna e a flora em detrimento da história do país.

Não é à toa que vem do Nordeste uma conexão maior com a tradição ibérica: o exemplo mais eloquente é a literatura de Ariano Suassuna e o Movimento Armorial por ele criado. Gilberto Freyre criou o antídoto à Semana de 22 no Nordeste, o Congresso Regionalista de 1926 – que se propunha modernista e a seu modo tradicionalista.

O cineastas do Cinema Novo cometeram o mesmo erro da Semana de 22: fazer tábua rasa do passado. Glauber Rocha atacou Alberto Cavalcanti – mestre de três cinematografias, a inglesa, a francesa e a brasileira – mas nunca teve a relevância deste na história do cinema. Aliás, o Cinema Novo tinha o mesmo vício da Semana de 22: é como se a cultura devesse seguir por um caminho em detrimento do outro. Na verdade, a força de uma cultura se dá pela diversidade verdadeira de opções formais.

Na arquitetura, o modernismo se tornou hegemônico, e também foi colocado como o único caminho a seguir. Os Palacetes Prates, em São Paulo, foram destruídos, assim como o Palácio Monroe, no Rio de Janeiro. Até hoje, o modernismo é hegemônico na academia e a arquitetura vernacular ou tradicional é deixada em segundo plano.

Tudo isso somado nos dá um triste panorama.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

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  1. Há salvação pós-modernismo... Guimarães Rosa consegue ser universal falando do regional sem a afetação machadiana, sem a blague modernista. Melhor, religa a cultura brasileira aos dramas clássicos da antiguidade. Acabo de ler Eça de Queiroz (Os Maias) e morando atualmente em Portugal concebo que a degradação cultural brasileira vem de longe, na ânsia do antropofagismo, devora-se, copia-se e pouco se cria, apenas roupagem diferente. #caminhemos!

  2. A Semana da Arte Miderna foi um movimento idealizado por membros da elite paulistana sem nenhum dom artístico, que hamais seriam aceitos numa escola de belas artes e que por pertencerem a uma classe social privilegiada provocou uma ruptura conceitual com o belo, o talento e o acadêmico para produzir uma ditadura modernista sem talento. Viva Ariano Suassuna e suas críticas ao antropofagismo.

  3. Quem relega o passado, por pior que tenha sido, não tem futuro. Precisamos do passado, nem que seja para nos lembrar dos erros cometidos.

  4. Também tenho notado há algum tempo que não somos expressão em mais nada. Olha, eu gostaria de falar muito aqui, sob todos os pontos levantados mas faltaria espaço, então faço minhas as suas palavras. Parabéns! Teófilo.

  5. "O Ciclo Gestatório de um Homem" é um relato autobiográfico, onde se faz uma ampla abordagem, desde o nascimento até o destino final do homem, o encontro com o sagrado, não deixando nenhum tema humano fundamental sem ser abordado e dissecado, como a infância, a adolescência, o casamento, a separação, além dos processos psicoterápicos pelos quais passou o autor; trata-se talvez da mais profunda reflexão sobre a alma humana desde "A interpretação dos sonhos, de Freud. Sugiro.

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