Foto: Marcelo Camargo/Agência BrasilLula: longe, muito longe, de ser um democrata

A aceitabilidade da derrota

Nas democracias plenas, a alternância de poder faz parte do metabolismo normal do regime. Para o PT, entretanto, perder uma eleição é sempre o fim do mundo
08.06.23

Comecemos examinando a difícil situação do PT com algumas perguntas e respostas:

O PT tem maioria no parlamento? Não tem. Tem 13% da Câmara e o apoio leal de 25% dos deputados (130 em 513). Pode-se dizer que é hiperminoritário.

O PT pode reeditar o mensalão? Não pode. Hoje há mais vigilância democrática das instituições e da sociedade.

O PT consegue convocar grandes manifestações de rua para pressionar o parlamento? Não consegue mais. E nada garante que uma manifestação chapa-branca não será sucedida por uma manifestação oposicionista maior.

O PT pode comprar votos no parlamento por meio de emendas e cargos? Pode, sim. Mas nada assegura que assim conseguirá  aprovar medidas que contrariem a inclinação majoritária.

O que restou então ao PT para conseguir manter a popularidade do governo? Restaram ainda grandes meios de comunicação simpáticos, dois institutos de pesquisa de opinião e uma turma de intelectuais que criam narrativas (como a de que o PT e Lula são social-democratas ou de que a democracia no Brasil corre risco se o governo Lula não der certo). Mas esse pessoal tem limites: não vai avalizar versões lulopetistas delirantes (por exemplo, de que a Venezuela é uma democracia ou de que a Ucrânia é tão culpada pela guerra quanto Putin).

Então como Lula e o PT vão conseguir governabilidade? Bem… a única saída que restou foi tentar manietar o parlamento a partir da intervenção política de um judiciário controlado. Mas isso significaria autocratizar o regime.

Podemos dizer que essa é uma situação muito difícil para o PT? Sim como o PT acha que não há para onde recuar, a ele só restará avançar nesse caminho insano – tipo “dobrar a aposta seguindo às cegas” – que, ao fim e ao cabo, levará à autocratização do regime. Provavelmente, porém, isso tem poucas chances de se consumar.

Qual é então o problema de fundo do PT? Nada disso seria problema se o PT admitisse o princípio democrático da aceitabilidade da derrota. Mas tudo isso vira uma maldição quando o PT adota como imperativo não sair do governo (em 2026 e além).

Eis-nos então diante de uma das regras não-escritas da democracia, sem a qual ela não pode perdurar (na verdade, nem funcionar direito): aquela que Felipe González chamou certa vez de “aceitabilidade da derrota”.

Nas democracias plenas (ou liberais, ou não populistas – tudo isso, em termos práticos, é agora a mesma coisa) a rotatividade ou alternância faz parte do metabolismo normal do regime. As eleições periódicas são um meio de estabilizar o regime democrático, contemplando as diversas forças em interação, dissolvendo as tensões que – uma vez acumuladas – ameaçariam o modo propriamente democrático de regulação de conflitos. A aceitabilidade da derrota impede (ou dificulta) que a política seja praticada como uma continuação da guerra por outros meios.

Ao contrário, nas democracias parasitadas por populismos, as eleições são um meio de (ou um instrumento para) chegar ao governo, nele delongando-se por tempo suficiente para tomar o poder ou alcançar o controle da sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido hegemônico (e hegemonista). Neste caso, a rotatividade não é desejável, pois atrapalha a consecução dessa estratégia. Uma derrota eleitoral é encarada então como uma tragédia. Logo, é necessário fazer tudo para que ela não aconteça e é por isso que nenhum partido populista sai facilmente do poder apenas pelo voto. A não aceitabilidade da derrota transforma a política em uma continuação da guerra por outros meios.

Vamos ver dois exemplos, das duas (únicas) democracias liberais da América do Sul:

O caso do Chile. Aylwin é substituído por Frei, que é substituído por Lagos, que é substituído por Bachelet, que é substituída por Piñera, que é substituído novamente por Bachelet, que é substituída novamente por Piñera, que é substituído por Boric. E o mundo não acabou.

O caso do Uruguai. Sanguinetti é substituído por Lacalle, que é substituído por Sanguinetti novamente, que é substituído por Batlle, que é substituído por Vázquez, que é substituído por Mujica, que é substituído novamente por Vazquez, que é substituído por Lacalle Pou. E o mundo não acabou.

Para o PT, entretanto, pelos motivos expostos acima, perder uma eleição é sempre o fim do mundo. Significa ter de interromper a implementação de sua estatégia, que depende, em grande parte, de se manter na chefia do governo e do Estado por tempo suficiente para conquistar hegemonia em todo lugar onde isso for possível. Essa estratégia sempre foi de longo prazo na medida em que o PT não tinha força suficiente para se apossar das instituições decisivas de modo fulminante após uma vitória eleitoral.

No entanto, depois do impeachment de Dilma, dos reveses eleitorais de 2016, 2018 e 2020 e da prisão de Lula, houve uma mudança de ritmo. Com a volta do grande líder ao jogo político ocorreu uma centralização, na sua pessoa, dos processos de decisão interna do partido. Isso aconteceu na história com vários condutores de rebanhos cujas personalidades passaram a ser cultuadas, com horríveis consequências.

O problema dessa aposta num líder salvador, em alguém que, pela sua alta gravitatem, vai fazer uma ligação direta com as massas bypassando as mediações institucionais para dar um curto-circuito na política das elites e inaugurar um novo mundo, é que todos os líderes são mortais. Quando eles desaparecem, quebra-se o encanto. Então, quando esses líderes vão envelhecendo e seus propósitos últimos estão longe de ser concretizados, há uma aceleração brutal da corrida pelo poder a qualquer custo (aproveitando-se cada minuto, enquanto eles estão vivos).

No caso do PT, a organização hegemonista sabe que, sem ele, Lula, fundido que foi à entidade coletiva, será praticamente impossível prosseguir (a menos que se convertesse à democracia liberal – o que não vai fazer porque não é da sua “natureza”: o escorpião não vira sapo). É por isso que Lula e o PT avançam mais do que permitiriam as condições objetivas dadas. A correlação de forças configurada hoje na sociedade brasileira não autoriza o que o líder, os dirigentes e os militantes partidários estão fazendo. Se ainda não há uma oposição democrática pujante, há uma resistência social imensa ao partido, uma situação altamente desfavorável no parlamento e a maior parte do empresariado que conta de fato não apoia o partido (pior do que isso, não gosta muito dele).

Mas Lula, o PT e a militância se comportam como se tivessem vencido a eleição com 80% dos votos e estivéssemos numa situação pré-revolucionária. Só para dar alguns exemplos, eles transigem com Putin e odeiam o “nazista” Zelensky, acham que o agressor responsável pela guerra da Ucrânia é a Otan a serviço do imperalismo norte-americano e do neocolonialismo europeu, desprezam as democracias liberais (que alguns ainda chamam de “burguesas”) afastando-se das nações mais civilizadas do mundo, investem na coalizão de mega-autocracias do planeta chamada BRICS e defendem abertamente as ditaduras de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua.

Com todas essas evidências as forças políticas democráticas da sociedade brasileira vão acabar concluindo que o PT já não pode ser considerado um player válido da democracia e que seu líder, na verdade, está longe, muito longe, de ser um democrata.

E vão fazer isso logo que descobrirem que a alegação de que o PT é democrático porque governou o país por mais de uma década e não deu golpe de Estado, é uma empulhação. Golpe de Estado nunca foi a estratégia do PT e sim hegemonizar a sociedade.

Sim, felizmente o regime político vigente no Brasil continua sendo uma democracia, mas o PT e Lula não se converteram à democracia.

 

Augusto de Franco é escritor

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  1. O PT pode comprar votos no congresso? não só pode como compra às claras e pior numa imoralidade criminosa legal sob tanto cinismo que Lira e CapacHECO fazem isto no focinho de uma nação idiotizada ajoelhada a bandos que se arvoram partidos políticos a serviço de elites ladravazes, cínicas e criminosas capaz de qualquer coisa e assim qualquer um que tenha neurônios ainda livres não tem nenhuma dúvida do nosso destino ... o LIXO e quem sobreviver chorará.

    1. Na verdade desde FHC o "congressiu nassionau" é sistematicamente comprado basta lembrar como aprovaram a reeleição que destrói o país e o mesmo tiveram de fazer seus sucessores para poder desgovernar esta a dura realidade, o Brasil sob este sistema insano é ingovernável pela decência mas um maná para os bandos que se empoderam.

  2. Lula está visivelmente decadente. A tentativa desesperada de realizar o que não conseguiu em governos passados vai terminar mal. Só não vê isto quem não quer.

  3. Gostaria que Gleisi e seus asseclas lessem esse texto e interpretassem. Talvez aprenderiam que o líder do PT é mortal, e que o grande Lulapai não tem mais muito tempo de vida. Quem será o novo líder? A moçada que vem pregando o comunismo? o socialismo? eles nem sabem o que Che Guevara fez por Cuba e quão pobre ficou o pais depois da e Revolução.

  4. Lula, o PT e as esquerdas radicais não conseguem enxergar fatos incontestes da história ocorridos principalmente na América do Norte e na Europa Ocidental: Nos séculos XVII, XVIII, XIX, XX e agora. A verdadeira Democracia e a Liberdade são os berços do imenso progresso tecnológico e cultural dos países líderes do mundo ocidental. Sem democracia e cultura, não existe progresso. Amizade c países democráticos e ricos traz progresso e riqueza. Amizade c países autocráticos traz miséria e corrupção!

  5. O melhor do texto foi lembrar que “todos os líderes são mortais”. Dr Alckmin deve sentir que o seu líder já exala o odor. E mais da metade dos brasileiros na torcida para outra daquelas bebedeiras tão frequentes que o derrube no banheiro e o faça se afogar no vômito

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