André Dusek/Estadão ConteúdoManifestantes em Brasília, durante os protestos de 2013: movimento jamais tentou se institucionalizar

2013: a instabilidade como regra

O legado permanente do movimento de uma década atrás foi o enfraquecimento de todas as presidências vindas na sequência e uma maior transferência de poder para o Legislativo
08.06.23

Quando Lula foi declarado vencedor das eleições de 2022, pensei: “acabou 2013, o ciclo se fechou”. O rio da política brasileira, transbordado há dez anos, voltou para o seu leito e o país, assim como na parábola do filho pródigo, retornou para o ponto de partida, devolvendo simbolicamente o PT ao poder. Embora esteticamente atraente, como todo texto que termina voltando à origem, essa abordagem cíclica da última década não é precisa.

Se contada assim, com começo, meio e fim, as manifestações de 2013, que levaram milhares de pessoas às ruas pela primeira vez 21 anos depois do impeachment de Fernando Collor, possivelmente seria uma história de fracasso, no qual o sistema político resistiu às pressões para se emendar e venceu a sociedade pelo cansaço. Adeptos literários desse looping, hoje, fazem mea culpa do apoio que deram posteriormente à operação Lava Jato, que materializou uma aspiração difundida à época segundo a qual o combate à corrupção a qualquer custo seria o nosso ticket para o mundo “padrão Fifa”.

Outra maneira de ver 2013 é possível, no entanto, se adotarmos uma perspectiva em espiral, onde o retorno é apenas aparente, uma ilusão de ótica, considerando que as condições gerais foram todas alteradas. Nesse sentido, é importante conhecer o conceito de fragilização do poder do venezuelano Moisés Naím, hoje um analista de política internacional do primeiro time, tendo sido ex-editor da revista Foreign Policy.

No início dos anos 90, “com apenas 36 anos”, Naím foi nomeado ministro de Carlos Andrés Perez e estava encarregado de implementar reformas liberais da economia, como fizeram todos os países da América do Sul à época. A reação da população venezuelana desencadeou protestos que paralisaram o país e, após uma repressão violenta, restou um grande saldo de mortos e um profundo sentimento de perplexidade que Naím transformou na sua agenda de pesquisa, qual seja, a redução dos limites de ação das elites dirigentes.

Em resumo, seu argumento é que uma série de mudanças sociais vêm fragilizando as proteções que as estruturas de poder historicamente construíram em torno de si para se perpetuarem, lançando a política (e outras atividades) em um estado de volatilidade e instabilidade permanente. Naím afirma que “grandes atores tradicionais (governos, exércitos, empresas, sindicatos, etc) estão sendo confrontados com novos e surpreendentes rivais – alguns muito menores em tamanhos e recursos e aqueles que controlam o poder deparam-se cada vez mais com restrições ao que podem fazer com ele” e que o poder enfrenta um processo de “degradação”. Note-se, não se trata de uma circulação tradicional de elites, que substitui velhos atores por novas lideranças, mas de uma fragilização geral e indeterminada das barreiras que as protegem.

Na véspera das manifestações, Dilma tinha 79% de aprovação popular, superando os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, e exibia grande confiança. Para ela, a eclosão dos protestos caiu como um “raio em céu azul” (frase de Karl Marx). Gilberto Carvalho, então seu secretário-geral, analisando aquilo tudo, disse “ou nós entendemos isso aí, ou seremos atropelados pela história”. Ao final, o PT, sem compreender nada e bastante magoado, classificou o sentimento das ruas como ingratidão.

Michel Temer, sucessor de Dilma, tão pouco teve força. Apesar do amplo apoio do Congresso e dos setores empresariais, Temer fez um governo conturbado, frágil e limitado não pela existência de uma oposição articulada, mas pela ação do Ministério Público que, por meio de vazamentos, gravações e embate direto, minou rapidamente seu apoio popular, que nunca foi alto. A incapacidade da clivagem pós-impeachment de se consolidar levou à ascensão de um quasi outsider, Jair Bolsonaro, eleito sem recursos e sem fazer campanha após sofrer um atentado a faca e ter que ficar hospitalizado.

Bolsonaro foi o primeiro presidente a perder uma disputa pela reeleição mesmo empenhando muitos recursos públicos na campanha com políticas assistenciais de última hora. Poderia se esperar que, vencedor, Lula, viesse com forte apoio popular e capacidade de controlar o processo decisório de ponta a ponta. Cinco meses depois, o Executivo teve que “chorar sangue” para aprovar o desenho da Esplanada e conta com no máximo 150 votos na Câmara. Resultado de uma eleição apertada que deu uma cor para o Legislativo e outra para o Executivo.

Por essa lente, 2013 não fracassou porque nunca tentou se institucionalizar. Seu legado permanente foi o enfraquecimento de todas as presidências vindas na sequência e uma maior transferência de poder para o Legislativo, que se aproveitou dessa debilidade na melhor lógica. Os protestos, portanto, podem ter representado a inauguração de uma era de mudanças profundas cuja instabilidade é a regra.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

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  1. O cenário descrito é realista, mas jogar a fragmentação do poder executivo e abocanhamento do mesmo pelas víboras do legislativo nas costas dos manifestantes que ousaram exigir um país decente e apoiar a única operação policial da nossa história que atacou realmente a corrupção é cruel e injusto.

  2. Mais ou menos. Na prática, hoje quem realmente assumiu toda a liderança até onde não deveria ter foi a nossa Suprema corte.

  3. pretendo continuar saindo às ruas para fortalecer qualquer iniciativa que tenha por objetivo melhorar o país. Temos muito para conquistar e poucas lideranças que podemos confiar. Mas ou é assim ou ficar em casa assistindo o BBB e as novelinhas globais.

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